"Eles se dedicavam ao ensino dos apóstolos e à comunhão, ao partir do pão e às orações.
Todos estavam cheios de temor, e muitas maravilhas e sinais eram feitos pelos apóstolos. Todos os que criam mantinham-se unidos e tinham tudo em comum. Vendendo suas propriedades e bens, distribuíam a cada um conforme a sua necessidade. Todos os dias, continuavam a reunir-se no pátio do templo. Partiam o pão em suas casas, e juntos participavam das refeições, com alegria e sinceridade de coração, louvando a Deus e tendo a simpatia de todo o povo. E o Senhor lhes acrescentava todos os dias os que iam sendo salvos" (Atos 2:42-47, NVI)
Está cada vez mais fácil encontrar pessoas, muitas vezes sinceras, acreditando que o socialismo pode ser encontrado na Bíblia Sagrada. Um dos argumentos principais consiste na utilização do texto do livro de Atos, capítulo 2, versos 41 a 47, que seria um “suposto” apoio a esse pensamento. O texto completo é este: “Então, os que lhe aceitaram a palavra foram batizados, havendo um acréscimo naquele dia de quase três mil pessoas. E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações. Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos. Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade. Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos.”
Neste texto, estão listadas as três principais razões pelas quais o livro de Atos não pode ser um indicativo ou algum tipo de apoio para o socialismo dentro do cristianismo. De forma alguma os apóstolos estariam prescrevendo alguma norma de conduta para as sociedades cristãs posteriores.
1. Acreditar que Atos dá suporte à ideologia socialista é um anacronismo.
Como se sabe pela História, 18 séculos separam o socialismo do Novo Testamento! O Dicionário de Política de Norberto Bobbio diz o seguinte: “Em geral, o Socialismo tem sido historicamente definido como programa político das classes trabalhadoras que se foram formando durante a Revolução Industrial” (fim do século 18 e começo do século 19).
O significado vulgar de socialismo é a “estatização dos bens e meios de produção”; e algumas pessoas adicionam ainda a expressão “numa sociedade sem classes”. Há dois tipos de socialismo, basicamente, nos quais se caracterizam duas ideias principais: o socialismo utópico e o socialismo científico.
“Socialismo utópico” tem esse nome por causa da obra de Thomas More, Utopia, em que o autor propõe uma sociedade harmônica, justa e contrapondo as sociedades injustas. A principal linha de pensamento do socialismo utópico é idealizadora, justa e igualitária, em que se alcançaria o progresso por meio da razão e do interesse comum sem, necessariamente, uma luta de classes. A característica utópica se dá devido à impossibilidade de alcançar tal sociedade. Seus principais pensadores foram o inglês Robert Owen e os franceses Saint-Simon, Charles Fourier, Pierre Leroux e Louis Blanc, na transição entre os séculos 18 e 19.
O “socialismo científico” ou “socialismo marxista” foi desenvolvido pelos prussianos (atual Alemanha) Karl Marx e Friedrich Engels, no século 19. Ao contrário do idealismo do socialismo utópico, o socialismo científico tinha como principal ideia a crítica ao sistema capitalista. Era necessário aprofundar as análises políticas, econômicas e sociais para então propor mudanças concretas na sociedade. Seu foco era na luta de classes (visão do patrão explorador e do empregado explorado), na mais-valia, na divisão do trabalho e na produção de capital.
A doutrina política de Marx (falecido no fim do século 19) fundamenta-se no materialismo dialético e histórico. Denomina-se materialismo porque seus conceitos diretivos são de conteúdo material; é dialético porque se apoia no método dialético de Hegel, no que tange à evolução dos fenômenos sociais; enfim, qualifica-se como histórico porque os princípios do materialismo dialético são aplicados à evolução dos fatos sociais e à política dos povos no decurso da marcha do tempo.
Se não bastasse o monstruoso intervalo de tempo entre os dois momentos históricos, o que já categorizaria o anacronismo evidente, podemos elencar outra disparidade entre essas ideologias e o texto bíblico no que se refere ao tempo do eventos mencionados: não havia concordância entre os apóstolos e o Império (“Estado”), primeiro porque não era intuito de unir a comunidade Cristã com o império Romano; e segundo porque não havia o Estado como o concebemos hoje e a favor do qual Marx pretendia estatizar os meios de produção.
Mesmo que houvesse o Estado moderno, ainda assim seria impraticável no socialismo porque a autoridade do Estado provém de Deus (como explícito em Romanos 13:1-7, 1 Pedro 2:13 e na conversa de Jesus com Pilatos, em João 19:10, 11), e poderia ter sido estabelecido por conta do pecado da humanidade, embora não fosse plano de Deus original (como descrito nos capítulos de 12, 24 e 26:9-11 de 1 Samuel, e o primeiro capítulo de 2 Samuel).
Embora todo o esforço desses pensadores em criar uma sociedade com oportunidades iguais a toda população e manter certo controle social, a verdade é que a História mostra que os governos socialistas foram em grande parte ditatoriais e um verdadeiro desastre econômico e político. Liberdades individuais foram suprimidas e as guerras e a fome mataram milhões de pessoas. Estima-se que as mortes foram cerca de cem milhões nestes últimos cento e poucos anos:
URSS: 20 milhões de mortos
China: 65 milhões
Vietnã: 1 milhão
Coreia do Norte: 2 milhões
Camboja: 2 milhões de mortos
Leste Europeu: 1 milhão
América Latina: 150.000 mortos
África: 1,7 milhão de mortos
Afeganistão: 1,5 milhão
O movimento comunista internacional e os partidos comunistas fora do poder levaram dezena de milhões de pessoas à morte. Isso mostra que, sim, o socialismo falhou e continuará falhando.
O que esse banho de sangue tem que ver com o livro de Atos capítulo 2? Absolutamente nada! Nem de perto podemos comparar a Bíblia com a ideologia socialista. São coisas completamente diferentes.
3. O texto de Atos 2 não é prescritivo.
Quando lemos o livro de Atos devemos ter em mente que estamos tratando de um livro histórico. A seguir você lerá uma pequena parte de um artigo do teólogo brasileiro Wilson Paroschi:
“A rigor, conforme o próprio Lucas afirma (At 1:1-5; cf. Lc 1:1-4), Atos é um documento histórico e, como tal, narra o desenvolvimento da igreja apostólica nos primeiros trinta anos após a ascensão de Cristo. Em muitos círculos eclesiásticos e evangelísticos, porém, predomina a crença, explícita ou implícita, de que esse livro consiste verdadeiramente numa espécie de manual da igreja ou manual de evangelismo, com orientações e exemplos práticos que, se forem seguidos à risca, produzirão os mesmos resultados. […] Cuidadosa análise da evidência, porém, parece apontar para outra direção. Em primeiro lugar, convém observar que, ao descrever a história da igreja primitiva, Lucas não registra somente os triunfos e sucessos dos apóstolos, mas também seus erros e retrocessos.”
“Em Atos, não encontramos apenas uma sucessão de experiências e relatos positivos que culminam com o evangelho sendo pregado destemidamente e sem qualquer impedimento até mesmo em Roma, no coração do Império (At 28:30-31). Ali também estão registradas inúmeras situações negativas envolvendo diretamente os apóstolos, suas decisões e atitudes.
“Exemplos disso são a negligência para com as viúvas helenistas (6:1), o preconceito e a reticência deles diante da pregação aos gentios (10:1–11:18), a desavença entre Paulo e Barnabé (15:36-40), a transigência de Paulo para com a lei cerimonial (21:17-26) e sua opção por ser julgado em Roma (25:9-12), o que se revelou um grave erro estratégico (cf. 26:30 32). Há também duas outras experiências que se revelaram particularmente negativas: a crença na volta imediata de Jesus e o consequente arrefecimento do fervor evangelístico logo após o Pentecoste.
“A perspectiva evangelística predominante na tradição judaica, tanto no Antigo Testamento (Sl 22:27; Is 2:2-5; 56:6-8; Sf 3:9-10; Zc 14:6) quanto na literatura intertestamentária (Tob 13:11; T. Ben. 9:2; Pss. Sol. 17:33-35; Sib. Or. 3.702-718, 772-776), é a do chamado movimento centrípeto, ou seja, não é Israel que vai às nações; são as nações que vêm a Israel, atraídas pela prosperidade e fidelidade do povo de Deus. E há claros indícios de que, apesar da ordem de Jesus em Atos 1:8, os apóstolos entenderam que, com a pregação no dia de Pentecoste e a conversão de mais de três mil pessoas, a missão deles no mundo já estava cumprida, ou pelo menos substancialmente cumprida.
“Como James D. G. Dunn salienta, o modelo evangelístico que eles conheciam era o que prevalecia no judaísmo de seus dias (cf. Mt 8:11-12; 10:5-6, 23; Mc 11:17) e, no Pentecoste, o mundo todo veio até eles; Lucas menciona mais de quinze diferentes nacionalidades ali representadas (At 2:9-11). O que houve em seguida foi uma diminuição do entusiasmo evangelístico, associado à ideia de que Jesus estaria voltando naqueles dias, como ficara implícito na promessa no dia da ascensão (1:6-11; cf. 3:20-21; Mt 10:23). Foi por isso que eles permaneceram tão firmemente arraigados em Jerusalém e centrados no templo (At 2:46; 3:1; 5:12, 20-21, 25, 42), até porque, de acordo com a profecia de Malaquias (3:1), o templo seria o ponto focal da iminente consumação.
“O elevado senso de fraternidade e comunidade demonstrado pela igreja apostólica logo após o Pentecoste (At 2:44-45; 4:32-35) revela que eles viviam na expectativa diária da volta de Jesus. Posses ou bens materiais perderam o valor. Tudo era vendido e o lucro trazido para um caixa comum para o benefício de todos. Eles não precisavam mais se preocupar com o futuro, pois não haveria futuro.
“A atitude foi louvável, sem dúvida, mas o momento foi errado, ainda que a iniciativa possa ter atendido a algumas necessidades específicas, como a ajuda aos pobres da comunidade de crentes. O espírito de desprendimento e fraternidade que manifestaram é, de fato, o que deve caracterizar o povo de Deus pouco antes da volta de Jesus, mas, naquele momento, representou um retrocesso para a igreja. A igreja de Jerusalém empobreceu (At 11:28; Rm 15:26; Gl 2:10), passou a depender da generosidade das igrejas gentílicas (At 11:29, 30; Rm 15:25, 26; 1Co 16:1-3) e não pôde sequer financiar o evangelismo mundial. Isso coube às próprias igrejas gentílicas (At 13:1-3; 15:35, 36; 2Co 11:8, 9; Fp 4:15-18). Deus permitiu que se levantasse uma perseguição contra a igreja (At 8:1-3) para dispersá-la de Jerusalém e, assim, levá-la a cumprir sua missão mundial (8:4, 5-8, 26-40; 11:19-21).
“Ou seja, é certamente um erro tratar o Livro de Atos como um manual da igreja, e a igreja apostólica como um modelo em tudo para a igreja de todos os tempos e lugares. Ao contrário do que mantém a concepção popular, a igreja apostólica não era perfeita, nem do ponto de vista doutrinário e muito menos do ponto de vista administrativo ou eclesiástico.
“A segunda razão pela qual a igreja apostólica não deve necessariamente ser vista como um modelo em tudo é que ela mesma foi produto de uma época, um lugar e uma cultura específica. A igreja apostólica nasceu no contexto do judaísmo do primeiro século. Ela aparece no cenário bíblico como mais uma dentre as várias denominações ou seitas judaicas da época. Ela teve que lidar com problemas tais como uma expectativa messiânica distorcida, o escândalo da cruz e o legalismo judaico, a inclusão dos gentios e a circuncisão, a idolatria no mundo greco-romano, filosofias pagãs, enfim, uma longa lista de problemas, quase todos muito diferentes dos nossos. É por isso que muito cuidado deve ser tido na hora de apontar os elementos prescritivos no Livro de Atos. Não é só abri-lo e achar que, porque foi assim no passado, tem que ser assim no presente. […]”
Voltei. Gostaria de enfatizar dois pontos importantes: primeiro, é que a empolgação da comunidade se dava exclusivamente pela promessa da vinda de Jesus, pela crença de que o pecado e a morte teriam fim e, finalmente, eles estariam para sempre com Jesus Cristo. O movimento cristão não se manteve unido e motivado no início por conta do ideal revolucionário de transformação social. Eles não estavam ali para reivindicar direitos humanos ou qualquer coisa do tipo. Apenas a alegria do evangelho que os motivava a ficar unidos.
Segundo, é que quanto à distribuição financeira e a comunhão de bens, a comunidade veio à falência pouco tempo depois! Agora veja: se os ideólogos modernos do socialismo procuram encontrar em Atos indícios de modelo econômico para comunidades locais, o que, de fato, eles encontrarão é o modelo ideal de como não distribuir renda e como chegar à falência!
3. Um cristão não pode ser socialista.
Certamente alguém falará que temos, como cristãos, uma função social importante. Isso é verdade e Cristo assim nos ensinou. Porém, existe um abismo entre ajudar o próximo e ser praticante do socialismo coercitivo (comunismo) que usa o aparelho estatal com mão de ferro para saquear a população e definir cada aspecto de sua vida. São ideologias nefastas que a história nos conta com desprezo. Infelizmente, ainda no Brasil poucas pessoas conhecem a história cruel e genocida dessas ideologias.
Considerando isso (e mais vários outros motivos não tratados neste texto), pode-se chegar à conclusão óbvia de que um cristão de verdade, que aguarda a vinda de Cristo, jamais pode perder tempo com essas ideologias ateias e fracassadas. Devemos lembrar sempre que este “Estado” é passageiro, mas o Reino de Deus é eterno.
Referências:
BOBBIO, NORBERTO; MATTEUCCI, NICOLA ; PASQUINO, GIANFRANCO. Dicionário de Política. 11. Ed. Brasília: Editora UNB, 1998. (Volume 1).
BUKHARIN, NIKOLAI, ABC do Comunismo, Edipro, São Paulo, 2011.
ENGELS, FRIEDRICH, Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, Edipro de Bolso, São Paulo, 2011.
FERACINE, LUIZ, Karl Marx ou a Sociologia do Marxismo, Lafonte, São Paulo, 2011.
JEAN-LOUIS PANNÉ, ANDRZEJ PACZKOWSKI, KAREL BARTOSEK, JEAN-LOUIS MARGOLIN et al. O Livro Negro do Comunismo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
PAROSCHI, WILSON, “Os Pequenos Grupos e a Hermenêutica: Evidências Bíblicas e Históricas em Perspectiva”, (Engenheiro Coelho, São Paulo, 2009). (artigo aqui). Ou no livro: SOUZA, ELIAS BRASIL (Ed.). Teologia e metodologia da missão: palestras teológicas apresentadas no VIII Simpósio Bíblico-Teológico Sul-Americano. Cachoeira: CePliB, 2011).
Michelson Borges
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