Pr. Adolfo Suárez
Original em http://noticias.adventistas.org/pt/coluna/adolfo-suarez/hermeneutica-interpretando-corretamente-a-biblia/
A hermenêutica pode ser definida como “a ciência e arte de
interpretação bíblica”; ciência porque tem normas que possibilitam um
sistema ordenado, e “arte porque a comunicação é flexível, e, portanto,
uma aplicação mecânica e rígida das regras às vezes distorcerá o
verdadeiro sentido de uma comunicação”.[1] Dito de modo simples, hermenêutica é a “disciplina que lida com os princípios de interpretação”.[2]
A hermenêutica é essencial para uma interpretação válida da Bíblia.
Ao fazer uso adequado dela podemos ter maior certeza de estar ouvindo a
voz de Deus, e não a voz da cultura, ou a nossa própria voz.
Razões para praticar uma hermenêutica apropriada
Uma das razões pelas quais devemos praticar a hermenêutica apropriada é com a finalidade de discernir a mensagem de Deus.[3]
Um cuidadoso sistema hermenêutico pode ser muito útil para discernir
apropriadamente o que Deus disse em Sua Palavra, mediante mãos e mentes
humanas. Assim, a hermenêutica nos protege da utilização indevida das
Escrituras, que poderia nos levar a distorce-la para o nosso próprio
interesse. Isso é possível porque a hermenêutica adequada fornece a
estrutura conceitual para interpretar corretamente por meio de exegese
acurada.
Uma segunda razão, é para evitar ou dissipar equívocos ou
perspectivas e conclusões errôneas sobre o que a Bíblia ensina. Pode
acontecer que algum leitor descuidado da Bíblia entenda que, se alguém
da família está doente fisicamente, é suficiente confiar em Deus
mediante a oração, sem buscar assistência médica. Entretanto, será que
confiar em Deus implica em não buscar ajuda médica? Por acaso não é Deus
quem capacita profissionais para ajudarem no cuidado da saúde?
Certamente Deus pode usar meios variados para cuidar de nossa saúde, e a
ajuda profissional de um médico pode ser um deles.
Finalmente, uma terceira razão para praticar a hermenêutica
apropriada é para sermos capazes de aplicar a mensagem da Bíblia em
nossa vida. De acordo com Carnell, termos ou expressões podem ser usados
em uma destas três maneiras: com apenas um sentido (univocamente),
com diferentes significados (equivocadamente), e com um significado
proporcional – em parte, a mesma, em parte, diferente (analogicamente).[4]
Se aplicarmos essa classificação à Escritura, então podemos dizer que
sua mensagem pode ser tanto unívoca, quanto equívoca, ou analógica.
Assim sendo, entidades como anjos, demônio, Deus, Jesus Cristo, etc.,
teriam o mesmo sentido para Paulo e João, do que para nós (compreensão
unívoca). Por outro lado, termos como leão e serpente podem se aplicar a
Jesus Cristo, ou a Satanás, dependendo da circunstância (equívoco).
Isso pode ser evidenciado em I Pedro 5:8 e Apocalipse 5:5; 20:2 e João
3:14. Além disso, a Bíblia usa expressões em que se percebe relação de
correspondência ou semelhança entre coisas e/ou pessoas distintas
(analogia). É o caso, por exemplo, da afirmação “Vós sois a luz do
mundo” (Mateus 5:14).
Considerando que, ao longo dos tempos, as pessoas
sempre possuíram ou possuem algum sistema de iluminação (tocha, vela,
lamparina, lâmpada, lanterna, etc.), então essa analogia é
compreensível. Obviamente, um correto sistema hermenêutico é
extremamente útil na explicação de termos unívocos, equívocos e
analógicos.
Tarefa desafiadora
Sustentar a ideia de um Deus que se revela num texto escrito não foi
algo desafiador para o cristianismo no primeiro milênio e meio de sua
história. De fato, por causa de sua origem judaica, o cristianismo
primitivo habituou-se a reconhecer a autoridade dos documentos escritos
como Escritura – ou seja, os cristãos acreditavam que a revelação e
vontade de Deus estavam localizadas em materiais escritos que serviam
para o culto e para as necessidades morais da comunidade de fé. “A noção
de que a autoridade residia no que depois foi chamado de Escrituras do
Antigo Testamento nunca foi questionada na comunidade cristã primitiva”.[5]
Todavia, na atualidade falar da revelação divina não é uma tarefa
fácil. Afirmar hoje em dia que a Bíblia foi dada por Deus, e que por
isso difere de qualquer outro texto, requer justificativas e explicações
muito bem fundamentadas,[6] as quais são pouco aceitas especialmente em sociedades céticas e secularizadas.
Entretanto, a despeito de argumentos muito bem estruturados que se
possam oferecer, a crença na revelação de Deus ao ser humano requer fé.
Mas, como McGowan se apressa em afirmar, isso não significa tratar o
cristianismo como anti-intelectual ou racionalmente inconsistente,
beirando a um “cego fideísmo”.[7] Afinal, há várias obras que tratam da temática da racionalidade da fé cristã, e o fazem com admirável consistência.[8]
Em última instância, como afirma Duncan Ferguson, a fé é uma
pré-compreensão necessária para interpretar corretamente a fé cristã.[9]
Isso não significa – sob hipótese alguma – que haja necessariamente
oposição entre um estudo literário ou histórico da Bíblia e a fé.
Todavia – como destacado por Ferguson – evidências históricas podem até
sugerir a atuação de Deus nos eventos, “mas elas não podem suprir a
experiência pessoal de confiança e compromisso no Senhor ressuscitado”.[10]
Assim, para a compreensão e prática de uma hermenêutica bíblica,
torna-se necessário o debate a respeito da Cristocentricidade da
Escritura, com vistas à efetivação da confiança e compromisso pessoais
do leitor contemporâneo.
Ao encerrar essa breve reflexão é importante lembrar que o desafio da
leitura e compreensão da Bíblia é tal, que os cristãos devem encará-lo
com cuidado e esmero; afinal, estão diante de um texto diferenciado, a
auto-revelação de Deus. E, nesse sentido, o teólogo G.C. Berkouwer
afirmou que “não há questão mais significativa em toda a teologia e em
toda a vida humana do que a natureza e a realidade da revelação”.[11]
Assim, os “cristãos sempre têm crido que a Bíblia é a Palavra de Deus”,
e com isto entendem que “ela tem sua origem na atividade revelatória do
Deus pessoal de quem ela fala […] e pela qual Ele se comunica com Suas
criaturas que Ele fez”.[12]
[1] Virkler, Hermenêutica Avançada: Princípios E Processos De Interpretação Bíblica. 9.
[2] Silva, Introdução À Hermenêutica Bíblica: Como Ouvir a Palavra De Deus Apesar Dos Ruídos De Nossa Época. 15.
[3] Os três itens comentados a seguir estão fundamentados em Klein et al., Introduction to Biblical Interpretation. 19-21.
[4] Edward John Carnell, An Introduction to Christian Apologetics : A Philosophical Defense of the Trinitarian-Theistic Faith, 3d edition. ed. (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1948). 144.
[5] Lee Martin McDonald, The Formation of the Christian Biblical Canon, Rev. and expanded ed. (Peabody, Mass.: Hendrickson Publishers, 1995). 1.
[6] A. T. B. McGowan, The Divine Authenticity of Scripture : Retrieving an Evangelical Heritage (Downers Grove, Ill.: IVP Academic, 2007). 31.
[7] Ibid. 31, 32.
[8] Algumas dessas obras: Cornelius Van Til and K. Scott Oliphint, The Def
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