sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Evolucionismo teísta


Muitos já leram ou ouviram falar das aventuras de Charles Darwin no H. M. S. Beagle. Logo que se graduou na Universidade de Cambridge, o jovem de 22 anos viajou por várias partes do globo a serviço da Marinha Real Britânica, chegando a visitar Salvador, na costa brasileira. A etapa de sua viagem que ficou mais conhecida foi nas ilhas Galápagos, território que hoje pertence ao Equador. Ali, Darwin fez várias observações sobre as espécies que habitavam o arquipélago. O livro que foi publicado com essas observações e ideias, intitulado Origem das Espécies, saiu somente 24 anos depois.

Em sua obra, Darwin propôs a hipótese de que a variedade de espécies que hoje presenciamos na natureza se produziu por meio de mutações e seleção natural. Conforme ele acreditava, a vida em nosso planeta começou com um organismo unicelular. Ao longo do tempo, esse organismo se reproduziu, multiplicou-se e transmitiu seu DNA de geração em geração. Ao longo dos séculos, esse DNA sofreu mutações, abrindo a porta para variações nos organismos. Ao se espalharem por diferentes ambientes do planeta, esses organismos enfrentaram frio, calor, falta de alimento e outras adversidades que acabaram forçando-os a lutar pela sobrevivência. Os que conseguiram se adaptar melhor (graças a certas mutações) às dificuldades de cada ambiente, continuaram se reproduzindo e passando suas mutações a seus filhos. Aqueles que perdiam essa batalha morriam pelo caminho. Esse processo cego e cruel de distinção entre organismos foi chamado de seleção natural. Com o passar do tempo e a influência do meio ambiente, os organismos manifestaram tantas diferenças entre um e outro que passaram a ser tratados como espécies distintas. Assim, novas espécies foram “aparecendo”, produzindo toda a diversidade que hoje vemos. Essa forma de ver a natureza e o processo de “produção” de novas espécies foi chamado de evolucionismo.

Embora alguns estudiosos já houvessem proposto ideias evolucionistas semelhantes, Darwin foi um dos primeiros a procurar explicar os mecanismos da evolução e a oferecer exemplos de como isso estaria acontecendo. Suas ideias chocaram muitas pessoas, especialmente pelo fato de contrariar o relato bíblico da criação. Para Darwin, a variedade de espécies não foi criada por Deus, mas teria surgido por meio de processos naturais. Consequentemente, tudo que está relatado nos primeiros capítulos do livro de Gênesis – criação em 7 dias literais, jardim do Éden, Adão e Eva, o fruto proibido e etc. – nunca existiu! Para efeito de conversa, é como se o próprio Deus não existisse nem tivesse criado!

Diante das ideias de Darwin, houve três reações diferentes. De um lado, houve aqueles que rejeitaram completamente as propostas darwinistas. Eles passaram a ser chamados de criacionistas. De outro, houve aqueles que abraçaram o evolucionismo e abandonaram a religião definitivamente, os chamados evolucionistas (ou darwinistas). Mas houve um grupo que ficou no meio, insatisfeito com as duas opções. Eles estavam convictos de que Deus existe e que a Bíblia, se fosse interpretada de maneira diferente, poderia acomodar tanto a revelação divina quanto as ideias evolucionistas. Esse grupo passou a ser chamado de evolucionista teísta.

Evolução e religião

Para esse último grupo, as evidências em favor do evolucionismo são irrefutáveis. Quando olham para o código genético, os fósseis e a morfologia de muitas espécies, agem como se o evolucionismo fosse um fato. Se rejeitarem as evidências, sentem como se estivessem adotando um obscurantismo científico. Para eles, a evolução acontece e ponto final!

No entanto, eles têm dificuldades de conciliar essa posição com o relato bíblico da criação. A Bíblia, por exemplo, fala de um Deus amoroso que preparou tudo para que a vida existisse neste planeta. Ele esteve intimamente envolvido em cada aspecto da criação. A Bíblia fala de uma criação em sete dias literais, realizada pela atuação direta de Deus. Ela relata como Deus criou várias espécies de plantas e animais por meio de Sua palavra. Descreve como o ser humano foi criado em meio a todas as outras espécies de seres viventes, e como a morte só passou a existir depois que todos esses organismos vieram à existência. Inclusive, na Bíblia, a morte só se torna uma realidade em decorrência da queda de Adão e Eva.

Esse quadro é completamente diferente daquele apresentado pelo evolucionismo. De acordo com a teoria de Darwin, foram necessários milhões de anos para que o planeta testemunhasse o surgimento das primeiras espécies. Dessa perspectiva, o ser humano só surgiu no final desse processo evolutivo, depois que quase todas as outras espécies já teriam evoluído. Darwin também acreditava que a morte é um instrumento fundamental para que todo o processo de evolução possa acontecer corretamente. Longe de ser uma consequência de algo que deu errado, a morte é o motor que aciona toda essa estrutura e a faz funcionar. Diferentemente da Bíblia, o evolucionismo depende de milhões de anos de evolução, morte de milhares de seres, chance cega e sofrimento incontável para que uma nova espécie apareça.

Na tentativa de conciliar ambas as formas de ver o mundo, o evolucionismo teísta precisou distorcer muita coisa na Bíblia. A história da criação deixou de ser interpretada como um relato factual e passou a ser vista como uma lenda ou um mito. Assim, os sete dias da criação foram interpretados como sete períodos de milhões de anos. Adão e Eva se tornaram personagens de uma lenda. A história de sua tentação e queda passou a ser lida como um mito, eficiente para descrever os defeitos humanos, mas inútil como fonte de informação histórica. Até a história do dilúvio passou a ser questionada, pois colocaria o ser humano no mesmo período em que os dinossauros viveram.

De acordo com os evolucionistas teístas, Deus cria por meio da evolução das espécies. O evolucionismo é o método escolhido por Deus para produzir nova vida. A morte dos mais fracos, debilitados e doentes é o instrumento principal de Deus para fazer a evolução das espécies avançar. Longe de ser uma intrusa na natureza, a morte passou a ser vista como um elemento criativo de novas espécies. Portanto, a morte, o sofrimento, a doença e a luta de milhões de seres viventes pela sobrevivência foram interpretados como mecanismos empregados por Deus para conduzir a história ao destino que Ele deseja. Conforme eles acreditam, Deus não cria por meio da Palavra (Sl 33:6-9) – Ele cria por meio da evolução.

Como você pode perceber, quem saiu perdendo nessa história foi a Bíblia. A ciência evolucionista se tornou a referência para determinar o que é factual, histórico e científico. O problema com essa distorção toda é que o cristianismo perdeu muita coisa no processo. Além de perder sua legitimidade na tarefa de determinar o que é verdadeiro ou não, o relato bíblico perdeu completamente sua relevância. Pense comigo: Se não houve uma semana literal, onde fica o sábado no meio de tudo isso? Deus disse que deveríamos descansar no sábado “porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou (Êx 20:11). Se nunca existiu uma semana da criação, Deus nunca descansou no sábado, e, portanto, também não precisamos guardar esse mandamento. Além do mais, a Bíblia afirma que a morte entrou no mundo por causa do pecado de Adão (Rm 5:12). Se a história de Adão é uma lenda, ele nunca pecou. Não existe pecado, certo ou errado. Toda a nossa moralidade pode ser definida conforme nosso gosto e interesse. Se não existe pecado, não estamos perdidos, e consequentemente não haveria necessidade de Jesus ter vindo à Terra, viver uma vida de sofrimento e morrer na cruz para nos salvar. Desse modo, a morte deveria ser tratada como algo natural, e não algo a ser vencido.

Por isso, a esperança da segunda vinda de Jesus, de uma vida eterna e feliz no Céu, da ressurreição – tudo isso seria falsidade. Na melhor das hipóteses, esses elementos da fé cristã devem ser interpretados como experiências de cada indivíduo nas lutas do dia-a-dia. Mas crer que Deus vai ressuscitar os justos da morte não tem sentido. Uma vez que Ele usou a morte para criar nova vida durante bilhões de anos, mudar de estratégia repentinamente seria contrário ao comportamento divino.

Esses são apenas alguns aspectos contraditórios que gostaríamos de mencionar. Existem muitos outros. Mas, de todos estes, a forma com que Deus é retratado por evolucionistas teístas é o que nos preocupa mais. Como acreditar que um Deus que ama, cria, perdoa, cura, restaura e salva seria capaz de inventar um processo tão malévolo para produzir a vida e a variedade de espécies? Com um Deus tão misericordioso e bondoso, como conciliar um processo cego, cruel, doloroso, que exige a morte e o desperdício de milhares de seres vivos, e que não dá indícios de um dia terminar? Essa é uma pergunta para a qual os evolucionistas teístas ainda não ofereceram uma resposta satisfatória.

Tanto criacionistas quanto evolucionistas já perceberam que a tentativa de conciliar essas duas visões de mundo está fadada ao fracasso. A mistura dessas duas propostas acabou denegrindo a Bíblia e as ideias de Darwin, criando um resultado mais problemático do que as hipóteses anteriores. Em outras palavras, criacionismo e evolucionismo são autoexcludentes. Se o evolucionismo for uma realidade, a Bíblia está errada, a criação nunca ocorreu e estamos presos a este processo interminável de mortes sem significado. A vida foi um acontecimento inesperado e nós que viemos à existência não temos propósito nenhum para a vida, a não ser procriar e transmitir nosso código genético. Nossa morte é certa e nosso futuro sem esperança.

O que esse estudo sobre o evolucionismo teísta nos ensina é que não há como conciliar a morte com a vida. Se Deus pretende nos oferecer a vida eterna, a seleção natural e a luta pela sobrevivência nunca poderão proporcionar a maior esperança que o cristianismo anseia. Tentar batizar o evolucionismo nas águas do cristianismo não irá transformá-lo em uma nova espécie de verdade. Longe de ser uma evolução das ideias bíblicas, a tentativa de mesclar essas duas visões de mundo é, na verdade, uma mutação degenerativa de um sistema que funciona perfeitamente bem. Por isso, confie no relato bíblico. Toda a estrutura de pensamento e de crenças que a Bíblia constrói está fundamentada no relato da criação em Gênesis. Alterar esse fundamento poderia pôr tudo a perder.

GLAUBER ARAÚJO é pastor, mestre em Ciências da Religião e editor de livros na Casa Publicadora Brasileira

Imagem e semelhança de Deus


O relato da criação de homem e mulher em Gênesis 1 e 2 guarda uma série de aspectos interessantes. Em Gênesis 1:26-27, a descrição da criação do primeiro casal é feita de maneira a ressaltar a relação deles com Deus. Em Gênesis 2:5-7 e 2:18-22, a estrutura do texto indica que o objetivo é descrever a relação deles entre si e com a criação.

A criação do ser humano, no capítulo 1, segue o padrão literário da seção (1:1-2:3). Primeiramente, aparece uma espécie de anúncio do que será criado e, logo em seguida (geralmente com o uso de mesmo verbo e expressões semelhantes), o relato do que foi criado. Assim, em Gênesis 1:26, o anúncio é feito de modo a focar na função que ele (ser humano) teria: ser à imagem e semelhança de Deus. Dentre as várias possibilidades que esta expressão pode ter, uma que parece carregar um sentido mais próximo ao texto em seguida é a de que ao homem foi delegado o poder de representar a Deus na criação. Isto porque, após dizer que criaria o homem à Sua imagem e semelhança, a função deste homem é descrita como sendo “dominar sobre a criação”. Após a criação do ser humano (אדם), a ordem divina dada a ele é, além de dominar (רדה), subjugar (כּבשׁ) as outras criaturas. Esta ideia de domínio é a única que difere o homem das outras criaturas, já que, para ambos (homem e criaturas), também é ordenado que cresçam, se multipliquem e encham a terra.

A fala divina em Gênesis 1:28 ecoa a de Gênesis 1:26, pois em ambos há a ideia de domínio sobre os animais, inclusive com o uso da mesma raiz hebraica, רדה. Existem ecos também do quinto dia, com a repetição dos imperativos de Gênesis 1:22: frutificar, multiplicar e encher. Entretanto, em 1:28 há o acréscimo da ordem de subjugar a terra. Basicamente, o ser humano, criado à “imagem e semelhança” de Deus, deverá subjugar a terra e dominar sobre os seres viventes.

A raiz usada para falar da sujeição da terra é כּבשׁ, que aparece catorze vezes na Bíblia Hebraica. É uma raiz semítica e ocorre em muitas línguas semitas, como acádico, canaanita, árabe, etc. Em quase todas apresenta o mesmo significado do hebraico: subjugar, dominar.

As ocorrências de subjugar podem ser divididas em quatro grupos pelo objeto ao qual se dirige o verbo. O elemento comum ao qual o verbo se refere no primeiro grupo é a terra e é formado pelos seguintes textos: Gênesis 1:28, Números 32:22, 29; Josué 18:1; 1 Crônicas 28:18. Tirando Gênesis 1:28, já visto, e que se trata de uma referência mais geral, todos os outros falam de uma terra específica conquistada nas batalhas.

Terra subjugada

Em Números 32:22, repetido em 32:29, o assunto é a divisão futura da terra e é feito um acordo com os filhos de Rúben e de Gade para que eles se juntassem ao resto do povo na conquista da terra de Canaã e quando a mesma fosse, por fim, subjugada, eles poderiam possuí-la. Josué 18:1 lida exatamente com a divisão da terra de Canaã e, já que naquele momento boa parte dela estava subjugada, Josué resolve dividi-la com as tribos que ainda não tinham recebido sua herança. A ideia sugestiva nestes textos é de que a terra está subjugada porque Deus a entregaria (e em Josué, entregou) a Israel e cumpriria a Sua promessa.

Por fim, nos mesmos moldes, está I Crônicas 22:18. Na fala de Davi para Salomão, onde ele discursa sobre a incumbência da construção do Templo, agora que toda a terra estava “subjugada” e em “paz”. A raiz כּבשׁ também pode estar conectada a nações e isso ocorre apenas uma vez, em 2 Samuel 8:11. Trata-se da narrativa de diversas vitórias militares de Davi e de tudo que ele ia consagrando a Deus de “todas nações que subjugava”, culminando com o final do verso 14: “e o Senhor dava vitórias a Davi, por onde quer que ia”. Há, portanto, a relação entre “subjugar” e o agir divino no mesmo contexto: Davi subjuga as nações porque Deus vai lhe dando vitórias.

Um terceiro uso tem relação com quem desempenha a ação: Deus. Acontece em Miquéias 7:19, onde o profeta promete que Deus se voltará para o povo e terá misericórdia, e irá “subjugar nossas iniquidades”. A ação de subjugar é, nesse caso, não só mais abstrata que nos outros, como é feita por Deus. Em Zacarias 9:15, num oráculo de castigo às nações e a promessa de um rei para Sião, YHWH garante proteção e vitória sobre os que combatem com fundas, pois esses serão subjugados por ele. Deus subjuga homens maus, inimigos de Israel. Aqui, o uso de “subjugar” é uma ação concreta executada por Deus. Em todos os outros versos a ação de subjugar está envolvida com alguma promessa de Deus, ou ordem dele, mas somente nesses dois versos aparece executada por ele.

O grupo mais numeroso é o que trata de “subjugar” outros homens (ou mulher – Ester 7:8). Em II Crônicas 28:10, após uma guerra, Israel, vitorioso, leva homens de Judá cativos e é repreendido pelo profeta Oded por “subjugar os filhos de Judá”, tornando-os em escravos, levando Deus a irar-se contra Israel. Na ocorrência dupla de Jeremias 34, versos 11 e 16, o contexto é de opressão também. Judá havia resolvido arrepender-se e liberar os escravos, mas volta atrás e retoma a escravidão logo em seguida, subjugando-os contra a vontade divina. Amós 8:4 é um oráculo contra Israel porque gosta de subjugar os miseráveis. Ainda nesse conjunto, Neemias 5:5 traz “subjugar” relacionado à escravidão, mas agora como fruto de uma reclamação dos israelitas dirigida a Neemias, dizendo que o projeto para a reconstrução de Jerusalém fez com que eles subjugassem os filhos e os tornassem escravos. Todos esses textos tratam da realidade da escravidão e usam a raiz כּבשׁ num sentido de opressão.

Ou seja, de maneira clara, os verbos usados para descrever o domínio do ser humano sobre a criação é o senhorio completo dele sobre a mesma. O homem é a imagem e semelhança de Deus porque, como Deus é o Rei, Ele concede ao homem o poder de reinar. Isto significa que o princípio imago Dei deságua em imitatio Dei.

Entre Gênesis 1:26 e 28, que tratam dessa imagem e semelhança, há um pequeno poema, em Gênesis 1:27, que é interessante por sua construção:

E criou Deus o homem na sua imagem
Na imagem de Deus criou ele
Macho e fêmea criou eles.

O verbo criar é repetido três vezes, e o nome de Deus, duas vezes, sendo o sujeito do verbo em todas as três vezes em que este ocorre (na última linha, de maneira implícita). A expressão “na imagem” é repetida duas vezes. Por fim, em negrito estão as referências àquilo que Deus cria: o ser humano, que depois é mencionado por sinal do objeto direto mais sufixo pronominal no singular, na segunda linha, e sinal do objeto direto mais sufixo pronominal no plural, na terceira linha, em hebraico. Tudo isto para dizer que o ser humano é imagem e semelhança de Deus, que o ser humano é macho e fêmea e que ambos (juntos/separados) são imagem e semelhança de Deus.

Em Gênesis 2, a criação do ser humano segue dois estágios: primeiro do homem, depois da mulher. O homem é criado (Gênesis 2:7) do pó da terra e recebe um sopro de vida. O nome do homem está conectado diretamente à terra – ʾādām(homem) ʾădāmâ (terra) – sendo “terra” um substantivo feminino, e “homem”, um substantivo masculino, possivelmente da mesma raiz. Os animais, curiosamente, também são criados do pó da terra (Gênesis 2:19), e a ação da criação de ambos, homem e animais, é descrita com o mesmo verbo – formar/moldar (yṣr). O homem, que veio da terra recebe como missão/função cuidar dela (Gênesis 2:15). Como Deus plantou e preparou o jardim, o homem deve trabalhar nele (imitatio Dei).

Na parte final de Gênesis 2, a criação da mulher é apresentada de maneira curiosa. Deus constata que o homem necessitava de uma ajudadora (Gênesis 2:18). Ele então a forma de uma costela do homem. O verbo usado para esta operação de feitura da mulher é “construir” (bnh), bem mais elaborado do que o verbo usado para o homem. A função dada à mulher, de ajudadora, também merece nota. A palavra ajudadora, do hebraico, aparece poucas vezes no texto bíblico (cerca de 21) e na maioria esmagadora se refere a Deus; ou seja, Ele é o ajudador. Assim como Ele é o ajudador, a mulher também o será (imitatio Dei). A mulher, que veio do homem, recebe a função/missão de cuidar do homem. O nome dado a ela, inclusive, reflete esta relação: ela é ʾšh (mulher), porque veio do ʾyš (homem) – substantivo feminino e masculino da mesma raiz.

A construção da narrativa é impressionante: sua origem é também sua missão. O homem da terra trabalhará a terra. A mulher, do homem, ajudará o homem. Por isso que, em Gênesis 3, após o pecado, ao receberem a punição divina, ambos, mulher e homem, sofrerão nas “mãos” de sua missão/origem: a mulher é punida em relação ao homem (Gênesis 3:16); o homem é punido em relação à terra (Gênesis 3:17-19). A origem é também o destino, desde o princípio.

É importante realçar que, em nenhum momento, há qualquer ideia de superioridade do homem sobre a mulher. Ambos são declarados realeza em Gênesis 1 e ambos estão conectados, funcionalmente, à sua origem em Gênesis 2. Toda a ênfase, como visto, está no imitatio Dei, o que significa que ambos são criados para imitarem o Criador.

Por fim, uma última nuance ainda em Gênesis 2. Gênesis 2:15 diz: “Tomou YahwehDeus o homem e o descansou no Jardim do Éden para o trabalhar e guardar.” O homem é tomado (lqḥ) por Deus e colocado (nḥ) no Éden. O verbo usado para dizer que o homem foi colocado no Éden é da raiz nḥ. Apesar do seu uso no hipʿil poder ser traduzido como assentar, deitar, deixar, colocar ou até mesmo pacificar, essas traduções parecem partir de seu significado principal, descansar. Em Êxodo 20:8-11 e 23:12, em textos que falam sobre o sábado, o sétimo dia, nḥ aparece em paralelo à raiz šbt, também traduzida como descanso.

Apesar de certa discussão sobre traduzir nḥ como descanso, pode-se ver pela continuação do verso que é uma alternativa possível e provável. Isso porque Deus coloca o homem no jardim para trabalhar (ʿbd) e guardar (šmr). E embora os verbos usados tenham um sentido básico simples de trabalho e serviço, carregam em si uma carga alta de relação com outros textos. Por exemplo, é a justaposição deles ligados à função sacerdotal no tabernáculo em Números 3:7-8; 8:26; 18:5-6 que chama a atenção. Em especial, o último texto citado, Números 18:5-6, além de colocar šmr e ʿbd como aquilo que os sacerdotes irão desempenhar, o narrador também usa o verbo lqḥ para apontar a escolha dos levitas. Os três verbos usados juntos em Gênesis 2:15 também o são no contexto sacerdotal de Números 18:5-6.

Diante disso, indica-se a função do homem no jardim como algo sacerdotal. Portanto, o uso desses verbos, com suas conexões sacerdotais, reforça que a tradução de nḥ deveria seguir uma linha também mais sacerdotal.

O uso de nḥ ao longo da Bíblia Hebraica parece indicar uma visão de que o descanso é um presente divino, pois Deus promete a Israel posse da terra e descanso de seus inimigos. Não obstante, dois textos conectam esse descanso dos inimigos com o santuário: Deuteronômio 12 e 1 Reis 5. Neles, o fato de Deus ter concedido descanso a Israel deveria ser um marco para que eles estabelecessem um lugar específico para Deus. Em outro conjunto de textos, agora com o uso de um substantivo derivado do verbo nḥ, esse Templo é associado ao lugar de descanso de Deus, onde estaria também seu trono (Salmos 132:7-8, 13-14; 1 Crônicas 28:2; entre outros). Ou seja, no jardim o homem descansa, servindo como um sacerdote numa espécie de santuário.

Desse modo, o ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus, homem e mulher, para desempenhar uma função real e sacerdotal. Essas funções fazem do ser humano um imitador de Deus. A imagem de Deus é a imitação dEle: imago Deideságua em imitatio Dei.

Pr. Edson Nunes

Fonte: Parte 1 | Parte 2


Bibliografia: 
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CASSUTO, U. A Commentary on the Book of Genesis: from Adam to Noah. Jerusalem: Magnes Press, 1959.
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DOUKHAN, J. B. Genesis. Nampa: Pacific Press; Review and Herald, 2016. (Seventh-Day Adventist International Bible Commentary, 1).
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FREEDMAN, H.; SIMON, M. (eds.). Midrash Rabbah. 3ª impressão. 10 vols. London: The Soncino Press, 1961.
KÖEHLER, L.; BAUMGARTNER, W. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament. Study Edition. 2 vols. Leiden: Brill, 2001.
TURNER, L. A.  Anúncios de Enredo em Gênesis. Engenheiro Coelho: Unaspress; Terceira Margem do Rio, 2017.
_________. Genesis. 2ª ed. Sheffield: Sheffield Phoenix Press, 2009. (Readings: A New Biblical Commentary).

Cristãos da “resistência”? Como assim?


Sempre gostei das reuniões de comissão de igreja (quando bem conduzidas e sob a influência do Espírito Santo, evidentemente) porque ali a gente vê a democracia representativa em ação. Isso me impressionou positivamente quando me tornei adventista, nos idos anos 1990. Houve vezes em que em reuniões de comissão eu defendi que as paredes do templo deveriam ser pintadas de branco (exemplo hipotético), mas a proposta vencedora acabou sendo a que defendia a cor bege. A maioria votou nela. Aprovada a proposta, passei a defendê-la como se fosse minha. Não fiquei criticando pelos corredores os que votaram na cor bege. Não fiquei torcendo para que o templo ficasse feio com aquela cor, para depois dizer que eu tinha razão. Na verdade, torci para que ficasse mais bonito, para o bem de todos. Assim devemos nos comportar em uma democracia. Devemos sempre pensar no bem coletivo e até abrir mão de nossos interesses, se eles não forem considerados os da maioria (o que não significa abrir mão de princípios, evidentemente; mas esse é outro assunto).

O presidente Jair Bolsonaro foi eleito pela maioria do povo brasileiro. Pode ser que não concordemos com tudo o que ele diz e faz, mas foi a vontade da maioria. Durante meses todos puderam obter informações sobre os dois candidatos, ler seus programas de governo, comparar suas ideias, tudo de acordo com as regras, como se espera em uma boa democracia. A eleição foi democrática, pelo voto direto e secreto, e Bolsonaro foi o escolhido de 55 milhões de brasileiros. Agora ele é o presidente do Brasil. E se você ama o Brasil e a democracia, o que deveria fazer? Aceitar a realidade, torcer pelo presidente e orar pela nação. Fazer de tudo para que nosso país possa dar certo e avançar.

Quanto aos cristãos, é fácil seguir a Bíblia Sagrada quando ela aprova nossos pensamentos e nossas vontades. Mas e quando ela contraria nosso ponto de vista? O que a Bíblia nos diz para fazer em relação às autoridades constituídas/eleitas? Você sabe:

“Antes de tudo, recomendo que se façam súplicas, orações, intercessões e ações de graças por todos os homens; pelos reis e por todos os que exercem autoridade, para que tenhamos uma vida tranquila e pacífica, com toda a piedade e dignidade” (1 Timóteo 2:1, 2).

“Lembre a todos que se sujeitem aos governantes e às autoridades, sejam obedientes, estejam sempre prontos a fazer tudo o que é bom, não caluniem ninguém, sejam pacíficos, amáveis e mostrem sempre verdadeira mansidão para com todos os homens” (Tito 3:1, 2).

“Por causa do Senhor, sujeitem-se a toda autoridade constituída entre os homens; seja ao rei, como autoridade suprema, seja aos governantes, como por Ele enviados para punir os que praticam o mal e honrar os que praticam o bem. Pois é da vontade de Deus que, praticando o bem, vocês silenciem a ignorância dos insensatos. Vivam como pessoas livres, mas não usem a liberdade como desculpa para fazer o mal; vivam como servos de Deus. Tratem a todos com o devido respeito: amem os irmãos, temam a Deus e honrem o rei” (1 Pedro 2:13-17).

“Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por Ele estabelecidas. Portanto, aquele que se rebela contra a autoridade está se opondo contra o que Deus instituiu, e aqueles que assim procedem trazem condenação sobre si mesmos” (Romanos 13:1, 2).

“Pois os governantes não devem ser temidos, a não ser por aqueles que praticam o mal. Você quer viver livre do medo da autoridade? Pratique o bem, e ela o enaltecerá. Pois é serva de Deus para o seu bem. Mas, se você praticar o mal, tenha medo, pois ela não porta a espada sem motivo. É serva de Deus, agente da justiça para punir quem pratica o mal. Portanto, é necessário que sejamos submissos às autoridades, não apenas por causa da possibilidade de uma punição, mas também por questão de consciência” (Romanos 13:3-5).

Obviamente que, quando as autoridades nos obrigarem a desobedecer à vontade de Deus, valerão outros textos, como Atos 5:29. Aí, nesse caso, deveremos opor resistência pacífica para ser fiéis a Deus. Mas o que alguns descontentes com a vontade da maioria dos brasileiros estão fazendo não é resistência. No mínimo é mimimi de frustrados com a perda do poder ou com o inconformismo pela prevalência democrática de uma ideia que não é a deles. Resistência a um governo que ainda nem começou? Ser contra tudo o que esse governo propuser? Como assim? Isso não é resistência. Isso é querer que tudo dê errado antes mesmo de começar. Isso é pouco se lixar para o Brasil. Isso é batalhar pelo divisionismo.

Mas Jesus não foi um revolucionário? Ele não foi da “resistência”? Já gravei um vídeo sobre isso e peço que você o assista (aqui), mas nunca é demais repetir: não, Jesus não foi um revolucionário. Ele tinha tudo para ser, afinal, o governo de Seu tempo era invasor, cobrava impostos para César, não havia sido eleito nem escolhido. Mas Jesus nunca Se insurgiu contra o Império. Ele sempre deixou claro que Seu reino não é deste mundo e mandou que dessem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Tomar Jesus como exemplo ou modelo de resistência política é, além de anacrônico, injusto. Em lugar de revolução Ele pregou a conversão. Em lugar de ódio, amor. E o amor dEle não era só de discurso, não. Ele amou na prática. Amou quem concordava com Ele e quem dEle discordava. Amou a todos e morreu por todos.

Recentemente, no Twitter, o comediante e apresentador Danilo Gentili escreveu: “O discurso dos caras agora é: ‘Vamos fiscalizar o governo e meter a boca em tudo o que estiver errado.’ Sim, vamos. Sem dúvida alguma vamos. Mas só lembrando aqui que nos últimos treze anos todo mundo que fez isso foi chamado de fascista.”

Muita gente teve que tolerar treze anos de um governo no qual não votou. Assim é a democracia. Muitas vezes orei e torci por Lula e Dilma. Orei para que eles fizessem o bem para o nosso povo, para que tivéssemos liberdade religiosa e paz. Da mesma forma, exatamente como manda a Bíblia, vou orar por Bolsonaro e por sua equipe de governo, para que tenham sabedoria e compaixão a fim de governar para o povo e para o bem do nosso país.

Não vou fazer resistência ao governo que nem começou, porque não é isso o que meu Mestre e Sua Palavra mandam. Continuarei opondo resistência ao reino das trevas, “porque não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais” (Efésios 6:12).



sexta-feira, 2 de novembro de 2018

A Fórmula da Vida

Entenda por que a crença popular sobre o estado do ser humano na morte é incompatível com a visão bíblica

O que é a morte? Essa é uma indagação que todos fazem, mas nem todos sabem responder satisfatoriamente. O Novo Dicionário Aurélio registra o seguinte no vocábulo “morte”: “1. Ato de morrer; o fim da vida animal ou vegetal. 2. Termo, fim. 3. Destruição, ruína.”

A definição do dicionário é clara, mas as crenças de muitas religiões e filosofias são diversas. Em seu livro Imortalidade ou Ressurreição?, o teólogo Samuele Bacchiocchi afirma que, historicamente, há dois pontos de vista principais e antagônicos sobre a natureza humana: o “dualismo clássico” e o “holismo bíblico”.

A visão dualista afirma que a natureza humana é composta por um corpo material e mortal mais uma alma imortal e espiritual. A alma imortal sobrevive à morte do corpo e se reúne a ele na ressurreição. Essa concepção dualista teve um impacto imenso no pensamento cristão, afetando a visão da vida humana, do mundo presente, da redenção e do mundo por vir.

Por outro lado, pesquisadores e eruditos bíblicos têm examinado os textos da Bíblia e concluído que a natureza humana não é dualista, e sim claramente holística. Ou seja, não há contraste entre o corpo e a “alma”. Aliás, a alma não é algo imaterial; ao contrário, designa a vitalidade ou princípio da vida humana. Não existe uma “alma” que sai do corpo quando a pessoa morre. O que acontece é a cessação da vida, quando o pó volta à terra, de onde veio, e o espírito volta a Deus, que o deu (Ec 12:7).

Segundo Niels-Erik Andreasen, em seu artigo no Tratado de Teologia, o estudo das palavras referentes à morte no Antigo Testamento aponta para uma compreensão simples e única: “o completo término da vida, de suas expressões e funções”. Isso pode ser verificado neste conhecido texto bíblico: “Porque os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem coisa nenhuma, nem tampouco terão eles recompensa, porque a sua memória jaz no esquecimento. Amor, ódio e inveja para eles já pereceram; para sempre não têm eles parte em coisa alguma do que se faz debaixo do sol” (Ec 9:5, 6).

Andreasen acrescenta que, na terminologia do Novo Testamento, “a morte também é caracterizada como o fim da vida, e como o inimigo de Deus e da humanidade”. Os vocábulos para “morte” e “morrer” retratam “uma única concepção da morte”: “o término de toda existência para todo o ser humano”.

De uma perspectiva funcional, a morte é o contrário da vida que Deus criou: o que a vida é, a morte não é. E o que é a vida? A Bíblia responde: “Então, formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente” (Gn 2:7). A partir desse texto, a vida humana pode ser esquematizada da seguinte forma: pó da terra + fôlego da vida = ser vivente. A fórmula da vida, como se vê, depende de Deus.

Analisemos brevemente essa ­fórmula. O pó da terra indica que a substância material da qual foi feita a humanidade (em hebraico ’adam) é a própria terra (em hebraico ’damah). Nesse sentido, a humanidade é caracterizada como sendo mortal e terrena, pois, como se originou do pó, não possui nenhuma vida inerente, nenhuma vida própria e nenhuma vida imortal.

Fica evidente no relato de Gênesis 2:7 que o corpo formado a partir do pó da terra não continha materiais ou componentes divinos, que lhe permitissem uma vida independente. Uma vez formado o boneco Adão do pó da terra, Deus lhe acrescentou a respiração, o que lhe deu vida/ânimo, às vezes chamada de “espírito”.

Esse fôlego de vida, como ressalta Andreasen no Tratado de Teologia, não era uma substância separada colocada no boneco sem vida. Foi o poder divino da vida que transformou o pó em um ser vivo. Ou seja, o sopro de vida “não representa uma segunda entidade, acrescentada ao corpo como se fosse um ingrediente, capaz de existir separadamente”. Esse sopro foi “um poder energizante procedente de Deus, que transformou o corpo terreno em um ser vivo”.


Mortal x imortal


Por trás da crença na reencarnação está a ideia da imortalidade: porque o ser humano não morre, reencarna em outra vida. Podem os cristãos, que acreditam na Bíblia, dar crédito ao ensinamento da imortalidade humana? Deixemos a própria Escritura responder a essa pergunta: o ser humano é como a flor, que nasce e logo murcha; é uma sombra passageira (Jó 14:2); ele não sabe o que lhe acontecerá amanhã, pois é como a neblina que aparece e logo se dissipa (Tg 4:14); é como uma brisa passageira (Sl 78:39).

Na obra The Seventh-day Adventist Encyclopedia, editada por Don Neufeld, é-nos dito que “as Escrituras em parte alguma descrevem a imortalidade como uma qualidade ou estado que o homem ou mulher – ou sua ‘alma’ ou ‘espírito’ – possui inerentemente. Os termos normalmente traduzidos como ‘alma’ e ‘espírito’ […] ocorrem mais de 1.600 vezes na Bíblia, mas nunca em associação com as palavras ‘imortal’ ou ‘imortalidade’”.

Por outro lado, Deus é apresentado como eterno e imortal: “Ao Rei eterno, imortal, invisível, Deus único, honra e glória pelos séculos dos séculos” (1Tm 1:17). “O único que possui imortalidade, que habita em luz inacessível, a quem homem algum jamais viu, nem é capaz de ver. A Ele honra e poder eterno” (1Tm 6:16).

Assim, na perspectiva bíblica, os seres humanos são limitados, mortais e transitórios, enquanto Deus é infinito, imortal e eterno. Atribuir imortalidade ao ser humano equivale a dizer que ele é divino, e isso contraria os ensinamentos da Escritura.

O apóstolo Paulo afirma que tudo foi criado por Deus e para Deus (Cl 1:16). É dele que toda criatura recebe o fôlego da vida; é por causa dele que “nos movemos, e existimos” (At 17:25, 28). De modo que o ser humano foi criado para viver eternamente, pois recebeu o sopro de vida de um Deus que é eterno. Não faria sentido pensar que Deus nos cria para então morrermos.

Nesse sentido, deve ficar claro que, “quando Deus criou Adão e Eva, concedeu-lhes liberdade de decisão – a capacidade de escolher”. O homem “poderia obedecer ou deixar de ­fazê-lo, e a continuação de sua existência dependeria de contínua obediência através do poder de Deus. Assim, a sua posse do dom da imortalidade era condicional” (Nisto Cremos, p. 429, 430).


Por que morremos


O texto de Gênesis 2:17 é a primeira passagem bíblica que faz referência à morte, numa advertência de Deus para que Adão e Eva não comessem da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comessem morreriam. Esse texto revela que a morte é consequência direta do pecado (ou punição, como diriam alguns), aspecto confirmado pelo ­apóstolo Paulo (Rm 5:12; 6:23) ao ligar a morte à narrativa sobre Adão.

Como resultado da desobediência, Adão recebeu logo a sentença que hoje faz parte da realidade de todos os seres humanos: “Tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3:19). E o que nós temos que ver com a transgressão de Adão e Eva? Por que nós, cidadãos do século 21, temos que morrer se não estávamos lá no Éden?

Acontece que somos descendentes deles e acabamos sendo impactados por aquilo que eles fizeram, assim como nossos descendentes serão impactados por aquilo que nós fizermos. Sendo que Adão e Eva perderam a imortalidade condicional e não podiam transmitir para nós aquilo que eles próprios não possuíam, “a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram” (Rm 5:12).
 
Morte como sono


É interessante notar que em pelo menos duas ocasiões Jesus comparou a morte ao sono. Em certa ocasião, Ele disse: “Nosso amigo Lázaro adormeceu, mas vou para despertá-lo” (Jo 11:11). O próprio escritor bíblico esclarece que Jesus “falara com respeito à morte de Lázaro; mas eles supunham que tivesse falado do repouso do sono” (v. 13).

De fato, o corpo já estava cheirando mal, pois fazia quatro dias que havia sido sepultado (v. 39). Em outra circunstância, ­referindo-se a Talita, filha de Jairo, chefe de uma sinagoga, Jesus disse: “Por que tanto choro e tanta confusão? A menina não morreu; ela está dormindo” (Mc 5:39, NTLH). Qual foi a reação das pessoas? Começaram a rir dele (v. 40), pois sabiam que menina estava morta (v. 35).

Por que a insistência de Jesus em comparar a morte com o sono? O que Ele está ensinando é que “a morte não é aniquilação completa; é apenas um estado temporário de inconsciência enquanto a pessoa aguarda a ressurreição” (Nisto Cremos, p. 431).

O médico Lucas e os apóstolos Paulo e Pedro também se referiram à morte como um sono. Falando do mártir Estêvão, Lucas escreveu: “Então, ajoelhando-se, clamou em alta voz: Senhor, não lhes imputes este pecado! Com estas palavras, adormeceu” (At 7:60). Paulo escreveu: “Nem todos dormiremos, mas transformados seremos todos, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao ressoar da última trombeta” (1Co 15:51, 52). Pedro, por sua vez, registra: “Nos últimos dias, virão escarnecedores com os seus escárnios, andando segundo as próprias paixões e dizendo: Onde está a promessa da sua vinda? Porque, desde que os pais dormiram, todas as coisas permanecem como desde o princípio da criação” (2Pe 3:3, 4).

Mas a metáfora do sono em relação à morte não é exclusiva do Novo Testamento. No Antigo Testamento também temos exemplos dela. Em Jó 14:10-12 (NVI), lemos: “Mas o homem morre, e morto permanece; dá o último suspiro e deixa de existir. Assim como a água do mar evapora e o leito do rio perde as águas e seca, assim o homem se deita e não se levanta; até quando os céus já não existirem, os homens não acordarão e não serão despertados do seu sono.” O salmista afirma: “Atenta para mim, responde-me, Senhor, Deus meu! Ilumina-me os olhos, para que eu não durma o sono da morte” (Sl 13:3). Daniel (12:2, NVI) registra: “Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno.”

Quando a Bíblia compara a morte com o sono, apresenta suas características e sua natureza (Nisto Cremos, p. 432):

  •  As pessoas que dormem estão inconscientes e nada sabem (Ec 9:5).
  • No sono, não há qualquer tipo de plano (Sl 146:4).
  • O sono impede atividades, trabalhos e qualquer manifestação emocional (Ec 9:6, 10).
  • Durante o sono, não há como louvar a Deus (Sl 115:17).
  • O sono pressupõe que a pessoa vai despertar (Jo 5:28, 29).

Onde estão os mortos


No imaginário popular é comum as pessoas pensarem que há um mundo dos mortos. Era assim na mitologia grega, que influenciou fortemente a cultura ocidental. Além disso, as pessoas falam no inferno com tal naturalidade que parece realmente haver um lugar como esse. “A visão tradicional do inferno tem dominado o pensamento cristão desde o tempo de Agostinho até o século 19”, afirma o Dr. Samuele Bacchiocchi no livro mencionado.

O teólogo ressalta ainda que a análise do uso da palavra sheol no Antigo Testamento e de hades no Novo Testamento (normalmente traduzidas como “inferno”) “mostra que ambos os termos denotam a sepultura ou o reino dos mortos, e não o lugar de punição para os ímpios. Não há felicidade ou punição imediatamente após a morte, mas um descanso inconsciente até a manhã da ressurreição”.

Entretanto, se a Bíblia não fala em “inferno”, de onde vem a compreensão de hades e sheol como lugar de tormento eterno? Bacchiocchi explica que “a noção de hades como o lugar de tormento para os ímpios deriva da mitologia grega, e não da Escritura. Na mitologia, hades era o submundo onde as almas conscientes dos mortos eram divididas em duas regiões principais, sendo um lugar de tormento e outro de bem-aventurança. Essa concepção grega de hades influenciou alguns judeus durante o período intertestamentário a adotar a crença de que imediatamente após a morte as almas dos justos prosseguiam à felicidade celeste, enquanto as almas dos ímpios iam a um lugar de tormento, no inferno”.


Certeza da ressurreição


Para encerrar, nada melhor que pensar no contraponto da morte: a ressurreição. Crer na ressurreição não é uma “aposta cega”. Tem fundamento e credibilidade a partir da experiência do Senhor Jesus Cristo. Conforme mostra William Craig, autor de Em Guarda: Defenda a Fé Cristã com Razão e Precisão, a síntese da coerência e credibilidade da ressurreição de Cristo é a essência da ressurreição dos justos.

Os relatos de Marcos 15:37–16:7, Atos 13:28-31 e 1 Coríntios 15:3-5, por exemplo, reafirmam os mesmos fatos: Cristo morreu, foi sepultado, ressuscitou e apareceu. De acordo com Craig, o ensino bíblico sobre o assunto pode ser resumido em três frases: (1) o sepulcro estava vazio, (2) Jesus apareceu após sua morte, (3) a convicção dos ­discípulos era correta, pois eles não colocariam sua vida em risco por uma mentira. Enfim, não precisamos ficar com dúvidas: Cristo ressuscitou e, por seu poder, quem permanecer firme com Ele, ainda que morra, viverá para sempre.

A pessoa que crê nas verdades ensinadas pela Bíblia sobre a natureza do ser humano, o estado dele na morte, a ressurreição e a promessa da eternidade não fica no escuro e tem uma esperança firme. A morte traz sofrimento e dor para todos, mas o cristão não se desespera. Sua esperança está em Jesus, a fonte da vida eterna.
 
ADOLFO SUÁREZ, pastor e educador, é reitor do Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia


(Artigo publicado originalmente na edição de novembro de 2016 da Revista Adventista)