sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Imagem e semelhança de Deus


O relato da criação de homem e mulher em Gênesis 1 e 2 guarda uma série de aspectos interessantes. Em Gênesis 1:26-27, a descrição da criação do primeiro casal é feita de maneira a ressaltar a relação deles com Deus. Em Gênesis 2:5-7 e 2:18-22, a estrutura do texto indica que o objetivo é descrever a relação deles entre si e com a criação.

A criação do ser humano, no capítulo 1, segue o padrão literário da seção (1:1-2:3). Primeiramente, aparece uma espécie de anúncio do que será criado e, logo em seguida (geralmente com o uso de mesmo verbo e expressões semelhantes), o relato do que foi criado. Assim, em Gênesis 1:26, o anúncio é feito de modo a focar na função que ele (ser humano) teria: ser à imagem e semelhança de Deus. Dentre as várias possibilidades que esta expressão pode ter, uma que parece carregar um sentido mais próximo ao texto em seguida é a de que ao homem foi delegado o poder de representar a Deus na criação. Isto porque, após dizer que criaria o homem à Sua imagem e semelhança, a função deste homem é descrita como sendo “dominar sobre a criação”. Após a criação do ser humano (אדם), a ordem divina dada a ele é, além de dominar (רדה), subjugar (כּבשׁ) as outras criaturas. Esta ideia de domínio é a única que difere o homem das outras criaturas, já que, para ambos (homem e criaturas), também é ordenado que cresçam, se multipliquem e encham a terra.

A fala divina em Gênesis 1:28 ecoa a de Gênesis 1:26, pois em ambos há a ideia de domínio sobre os animais, inclusive com o uso da mesma raiz hebraica, רדה. Existem ecos também do quinto dia, com a repetição dos imperativos de Gênesis 1:22: frutificar, multiplicar e encher. Entretanto, em 1:28 há o acréscimo da ordem de subjugar a terra. Basicamente, o ser humano, criado à “imagem e semelhança” de Deus, deverá subjugar a terra e dominar sobre os seres viventes.

A raiz usada para falar da sujeição da terra é כּבשׁ, que aparece catorze vezes na Bíblia Hebraica. É uma raiz semítica e ocorre em muitas línguas semitas, como acádico, canaanita, árabe, etc. Em quase todas apresenta o mesmo significado do hebraico: subjugar, dominar.

As ocorrências de subjugar podem ser divididas em quatro grupos pelo objeto ao qual se dirige o verbo. O elemento comum ao qual o verbo se refere no primeiro grupo é a terra e é formado pelos seguintes textos: Gênesis 1:28, Números 32:22, 29; Josué 18:1; 1 Crônicas 28:18. Tirando Gênesis 1:28, já visto, e que se trata de uma referência mais geral, todos os outros falam de uma terra específica conquistada nas batalhas.

Terra subjugada

Em Números 32:22, repetido em 32:29, o assunto é a divisão futura da terra e é feito um acordo com os filhos de Rúben e de Gade para que eles se juntassem ao resto do povo na conquista da terra de Canaã e quando a mesma fosse, por fim, subjugada, eles poderiam possuí-la. Josué 18:1 lida exatamente com a divisão da terra de Canaã e, já que naquele momento boa parte dela estava subjugada, Josué resolve dividi-la com as tribos que ainda não tinham recebido sua herança. A ideia sugestiva nestes textos é de que a terra está subjugada porque Deus a entregaria (e em Josué, entregou) a Israel e cumpriria a Sua promessa.

Por fim, nos mesmos moldes, está I Crônicas 22:18. Na fala de Davi para Salomão, onde ele discursa sobre a incumbência da construção do Templo, agora que toda a terra estava “subjugada” e em “paz”. A raiz כּבשׁ também pode estar conectada a nações e isso ocorre apenas uma vez, em 2 Samuel 8:11. Trata-se da narrativa de diversas vitórias militares de Davi e de tudo que ele ia consagrando a Deus de “todas nações que subjugava”, culminando com o final do verso 14: “e o Senhor dava vitórias a Davi, por onde quer que ia”. Há, portanto, a relação entre “subjugar” e o agir divino no mesmo contexto: Davi subjuga as nações porque Deus vai lhe dando vitórias.

Um terceiro uso tem relação com quem desempenha a ação: Deus. Acontece em Miquéias 7:19, onde o profeta promete que Deus se voltará para o povo e terá misericórdia, e irá “subjugar nossas iniquidades”. A ação de subjugar é, nesse caso, não só mais abstrata que nos outros, como é feita por Deus. Em Zacarias 9:15, num oráculo de castigo às nações e a promessa de um rei para Sião, YHWH garante proteção e vitória sobre os que combatem com fundas, pois esses serão subjugados por ele. Deus subjuga homens maus, inimigos de Israel. Aqui, o uso de “subjugar” é uma ação concreta executada por Deus. Em todos os outros versos a ação de subjugar está envolvida com alguma promessa de Deus, ou ordem dele, mas somente nesses dois versos aparece executada por ele.

O grupo mais numeroso é o que trata de “subjugar” outros homens (ou mulher – Ester 7:8). Em II Crônicas 28:10, após uma guerra, Israel, vitorioso, leva homens de Judá cativos e é repreendido pelo profeta Oded por “subjugar os filhos de Judá”, tornando-os em escravos, levando Deus a irar-se contra Israel. Na ocorrência dupla de Jeremias 34, versos 11 e 16, o contexto é de opressão também. Judá havia resolvido arrepender-se e liberar os escravos, mas volta atrás e retoma a escravidão logo em seguida, subjugando-os contra a vontade divina. Amós 8:4 é um oráculo contra Israel porque gosta de subjugar os miseráveis. Ainda nesse conjunto, Neemias 5:5 traz “subjugar” relacionado à escravidão, mas agora como fruto de uma reclamação dos israelitas dirigida a Neemias, dizendo que o projeto para a reconstrução de Jerusalém fez com que eles subjugassem os filhos e os tornassem escravos. Todos esses textos tratam da realidade da escravidão e usam a raiz כּבשׁ num sentido de opressão.

Ou seja, de maneira clara, os verbos usados para descrever o domínio do ser humano sobre a criação é o senhorio completo dele sobre a mesma. O homem é a imagem e semelhança de Deus porque, como Deus é o Rei, Ele concede ao homem o poder de reinar. Isto significa que o princípio imago Dei deságua em imitatio Dei.

Entre Gênesis 1:26 e 28, que tratam dessa imagem e semelhança, há um pequeno poema, em Gênesis 1:27, que é interessante por sua construção:

E criou Deus o homem na sua imagem
Na imagem de Deus criou ele
Macho e fêmea criou eles.

O verbo criar é repetido três vezes, e o nome de Deus, duas vezes, sendo o sujeito do verbo em todas as três vezes em que este ocorre (na última linha, de maneira implícita). A expressão “na imagem” é repetida duas vezes. Por fim, em negrito estão as referências àquilo que Deus cria: o ser humano, que depois é mencionado por sinal do objeto direto mais sufixo pronominal no singular, na segunda linha, e sinal do objeto direto mais sufixo pronominal no plural, na terceira linha, em hebraico. Tudo isto para dizer que o ser humano é imagem e semelhança de Deus, que o ser humano é macho e fêmea e que ambos (juntos/separados) são imagem e semelhança de Deus.

Em Gênesis 2, a criação do ser humano segue dois estágios: primeiro do homem, depois da mulher. O homem é criado (Gênesis 2:7) do pó da terra e recebe um sopro de vida. O nome do homem está conectado diretamente à terra – ʾādām(homem) ʾădāmâ (terra) – sendo “terra” um substantivo feminino, e “homem”, um substantivo masculino, possivelmente da mesma raiz. Os animais, curiosamente, também são criados do pó da terra (Gênesis 2:19), e a ação da criação de ambos, homem e animais, é descrita com o mesmo verbo – formar/moldar (yṣr). O homem, que veio da terra recebe como missão/função cuidar dela (Gênesis 2:15). Como Deus plantou e preparou o jardim, o homem deve trabalhar nele (imitatio Dei).

Na parte final de Gênesis 2, a criação da mulher é apresentada de maneira curiosa. Deus constata que o homem necessitava de uma ajudadora (Gênesis 2:18). Ele então a forma de uma costela do homem. O verbo usado para esta operação de feitura da mulher é “construir” (bnh), bem mais elaborado do que o verbo usado para o homem. A função dada à mulher, de ajudadora, também merece nota. A palavra ajudadora, do hebraico, aparece poucas vezes no texto bíblico (cerca de 21) e na maioria esmagadora se refere a Deus; ou seja, Ele é o ajudador. Assim como Ele é o ajudador, a mulher também o será (imitatio Dei). A mulher, que veio do homem, recebe a função/missão de cuidar do homem. O nome dado a ela, inclusive, reflete esta relação: ela é ʾšh (mulher), porque veio do ʾyš (homem) – substantivo feminino e masculino da mesma raiz.

A construção da narrativa é impressionante: sua origem é também sua missão. O homem da terra trabalhará a terra. A mulher, do homem, ajudará o homem. Por isso que, em Gênesis 3, após o pecado, ao receberem a punição divina, ambos, mulher e homem, sofrerão nas “mãos” de sua missão/origem: a mulher é punida em relação ao homem (Gênesis 3:16); o homem é punido em relação à terra (Gênesis 3:17-19). A origem é também o destino, desde o princípio.

É importante realçar que, em nenhum momento, há qualquer ideia de superioridade do homem sobre a mulher. Ambos são declarados realeza em Gênesis 1 e ambos estão conectados, funcionalmente, à sua origem em Gênesis 2. Toda a ênfase, como visto, está no imitatio Dei, o que significa que ambos são criados para imitarem o Criador.

Por fim, uma última nuance ainda em Gênesis 2. Gênesis 2:15 diz: “Tomou YahwehDeus o homem e o descansou no Jardim do Éden para o trabalhar e guardar.” O homem é tomado (lqḥ) por Deus e colocado (nḥ) no Éden. O verbo usado para dizer que o homem foi colocado no Éden é da raiz nḥ. Apesar do seu uso no hipʿil poder ser traduzido como assentar, deitar, deixar, colocar ou até mesmo pacificar, essas traduções parecem partir de seu significado principal, descansar. Em Êxodo 20:8-11 e 23:12, em textos que falam sobre o sábado, o sétimo dia, nḥ aparece em paralelo à raiz šbt, também traduzida como descanso.

Apesar de certa discussão sobre traduzir nḥ como descanso, pode-se ver pela continuação do verso que é uma alternativa possível e provável. Isso porque Deus coloca o homem no jardim para trabalhar (ʿbd) e guardar (šmr). E embora os verbos usados tenham um sentido básico simples de trabalho e serviço, carregam em si uma carga alta de relação com outros textos. Por exemplo, é a justaposição deles ligados à função sacerdotal no tabernáculo em Números 3:7-8; 8:26; 18:5-6 que chama a atenção. Em especial, o último texto citado, Números 18:5-6, além de colocar šmr e ʿbd como aquilo que os sacerdotes irão desempenhar, o narrador também usa o verbo lqḥ para apontar a escolha dos levitas. Os três verbos usados juntos em Gênesis 2:15 também o são no contexto sacerdotal de Números 18:5-6.

Diante disso, indica-se a função do homem no jardim como algo sacerdotal. Portanto, o uso desses verbos, com suas conexões sacerdotais, reforça que a tradução de nḥ deveria seguir uma linha também mais sacerdotal.

O uso de nḥ ao longo da Bíblia Hebraica parece indicar uma visão de que o descanso é um presente divino, pois Deus promete a Israel posse da terra e descanso de seus inimigos. Não obstante, dois textos conectam esse descanso dos inimigos com o santuário: Deuteronômio 12 e 1 Reis 5. Neles, o fato de Deus ter concedido descanso a Israel deveria ser um marco para que eles estabelecessem um lugar específico para Deus. Em outro conjunto de textos, agora com o uso de um substantivo derivado do verbo nḥ, esse Templo é associado ao lugar de descanso de Deus, onde estaria também seu trono (Salmos 132:7-8, 13-14; 1 Crônicas 28:2; entre outros). Ou seja, no jardim o homem descansa, servindo como um sacerdote numa espécie de santuário.

Desse modo, o ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus, homem e mulher, para desempenhar uma função real e sacerdotal. Essas funções fazem do ser humano um imitador de Deus. A imagem de Deus é a imitação dEle: imago Deideságua em imitatio Dei.

Pr. Edson Nunes

Fonte: Parte 1 | Parte 2


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