Entenda por que a fé perdeu o vigor e se tornou superficial, apesar de a religiosidade estar em alta
Nunca o mundo foi tão religioso. Parece que, finalmente, a fé triunfou. Em cada esquina há um templo. E, ao zapear com o controle remoto pelos canais de televisão, é mais fácil encontrar um culto para assistir do que um filme ou uma partida de futebol. Apesar de tanto esforço, nos últimos séculos, para esvaziar a política da religião, os eleitores anseiam cada vez mais que seus representantes pautem suas agendas conforme os preceitos das igrejas.
Vá a uma livraria, mesmo uma livraria secular, e você encontrará muitas Bíblias! O livro mais perseguido e odiado da história não mais precisa ser repassado restritamente nas igrejas, discretamente: é comercializado no balcão principal de uma grande livraria, em todas as cores e tamanhos, onde crentes e descrentes o apalpam e compram, como fazem com os lançamentos de autoajuda ou os romances.
Se há uma geração os cultos eram celebrados em igrejas com algumas dezenas de assentos (bancos de tábua dura), hoje é comum grandes templos para milhares de pessoas (acomodadas em poltronas acolchoadas). Se as ofertas eram moedinhas atiradas na sacola, hoje os cheques (e às vezes o cartão de crédito e a transferência bancária) injetam recursos vultuosos para as igrejas. Os líderes religiosos são figuras carismáticas. Cantores e pregadores atraem multidões que lotam estádios de futebol, mesmo que o privilégio de os ouvir signifique comprar um ingresso. Isso sem falar nos milagreiros, aqueles que surpreendem enormes concentrações com paraplégicos que se erguem da cadeira de rodas e dores nas costas remidas por uma enfática ordem proferida do alto do palanque.
Mas, tudo isso significa que as pessoas estão mais próximas de Deus? Surpreendentemente, a resposta é não! As estrelas da fé levam uma vida frívola cercada de luxo e exposta nas colunas sociais. Os milagres não transformam vidas, não contemplam todas as necessidades do corpo e da alma e não reproduzem as manifestações do poder do Espírito Santo narradas no Novo Testamento. As ofertas são obtidas sob manipulação e dadas com o interesse de o ofertante barganhar Deus e receber em troca mais do que deu, sem qualquer espírito de abnegação ou desejo de fazer prosperar a causa do evangelho. Os políticos religiosos costumam ser tão incoerentes como costumam ser os velhos políticos que nunca vão à igreja. A Bíblia é artigo de decoração, e é mais fácil encontrar a capa da Bíblia combinando com o estilo da vestimenta do que reconhecer seu conteúdo combinando com o estilo de vida de quem costuma carregá-la.
Houve um tempo parecido com estes tempos pós-modernos. Muita religiosidade, mas rara consagração a Deus. O mundo orbitava em torno da fé, mas isso não significava que as pessoas fossem espirituais. A igreja controlava o governo, mas isso nem de longe era uma bênção. Em vez de a idade da fé ser conhecida como idade da luz, foi conhecida como idade das trevas ou a Idade Média. Incomodados com os abusos cometidos em nome da religião nessa época, os historiadores nomearam a era seguinte, marcada por uma incredulidade reacionária, de Idade Moderna, ou Era das Luzes. O modelo de pensamento racionalista e irreligioso da Idade Moderna é chamado de iluminismo.
Mas as verdadeiras luzes da época das luzes não foram os céticos filósofos iluministas. Não se tratam dos nomes estudados nas escolas e resumidos nas enciclopédias, com John Locke (1632-1704), Voltaire (1694-1778), Jean-Jacques Rosseau (1712-1778), Diderot (1713-1784), D’Alambert (1717-1783), Immanuel Kant (1724-1804), David Hume (1711-1775), Adam Smith (1723-1790), Charles Darwin (1809-1882) ou Karl Marx (1818-1883), entre outros. Esses homens sem Deus podem ser valorizados pelos seus ensinamentos, mas as grandes luzes dessa época incrédula foram pessoas que viveram uma religiosidade muito diferente da hipocrisia medieval e da euforia contemporânea com o sagrado.
Um desses homens foi Martinho Lutero (1483-1546), que está sendo redescoberto em 2017 por ocasião dos 500 anos de seu ato de fixar as 95 teses contra a venda de indulgências na porta da igreja do castelo de Wittemberg. Lutero é conhecido por abalar o mundo, mas poucos sabem quanto ele esteve firmado na leitura da Bíblia e na oração. Antes de protagonizar a Reforma Protestante, Lutero já era um entusiasmado leitor das Escrituras, e fazia frequentes palestras sobre a Bíblia. Alguns biógrafos chegam a supor, com boa evidência, que ele conhecia a Bíblia de cor. De fato, Lutero viveu para Deus e Sua Palavra. Conheceu bem as línguas originais, o grego e o hebraico, e delas traduziu toda a Bíblia. Estudava e divulgava a Bíblia, tendo escrito longos comentários de quase todas as suas passagens. E orava muito. Certa vez, ao escrever e meditar sobre o Salmo 23, passou três dias e três noites trancado em um quarto, a pão e água, absorto no Pastor do Salmo 23, até que a esposa chamou um serralheiro para abrir a fechadura. Por mais atarefado que estivesse, nunca orava menos que duas horas por dia.
João Wesley (1703-1791), o grande avivalista metodista do século 18, orava pelo menos duas horas por dia. Ele dizia não confiar no pregador que orasse menos que isso. Durante parte da vida, acostumou-se a jejuar dois dias por semana, e era comum participar de vigílias, além das classes de encontro para oração que marcaram o movimento iniciado por ele. George Whitefield (1714-1770), evangelista que conviveu com Wesley, dividia o dia em três períodos de oito horas cada. Oito para o descanso e as refeições, oito para trabalhar pela salvação dos perdidos e oitos horas por dia para estar com Deus. O resultado de tanta oração foi que Wesley e Whitefield levaram dezenas de milhares de pessoas a Cristo. Isso no mesmo século em que os mais sagazes filósofos do iluminismo tentavam decretar a morte do cristianismo.
No mesmo século 19 em que Darwin e Marx tentaram tirar, respectivamente, Deus da origem e do destino do ser humano, um homem abandonou os sofismas materialistas e naturalistas de seu tempo e se devotou a estudar a Bíblia. Guilherme Miller (1782-1849), ex-adepto das filosofias iluministas, após sua conversão dedicava até seis horas diárias para estar com Deus e estudar a Bíblia. O resultado foi que esse fazendeiro da Nova Inglaterra provocou o despertamento milenarista na América do Norte, que levou multidões a Cristo e antecipou as expectativas de Sua volta para antes do milênio, diferentemente do que ensinava a teologia da época, influenciada pelo racionalismo dos iluministas.
Na modernidade, quando a tendência era o declínio da espiritualidade, houve quem se dedicasse a Deus por meio da oração e do estudo da Bíblia. Essas pessoas inflamaram despertamentos e inspiraram reformas. Hoje, na chamada Era Pós-Moderna, as pessoas são religiosas, mas lhes falta o fervor dos grandes heróis de Deus do passado. A espiritualidade pós-moderna precisa deixar de lado o “fuzuê” e o “oba-oba” dos cultos pirotécnicos e se recolher na câmara de oração, como fizeram os grandes homens e mulheres do passado. A Bíblia tem que deixar de ser simplesmente o adereço da moda. Sua verdade precisa moldar o pensamento e as atitudes de quem professa segui-la.
FERNANDO DIAS é pastor e editor da Casa Publicadora Brasileira
Texto original: Espiritualidade pós-moderna
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