Nesse artigo faço uma busca histórica da origem e do uso da expressão Vicarius Filii Dei como
interpretação de Apocalipse 13:18 nos círculos adventistas. Após esse
background histórico, discorrerei brevemente sobre o uso desse título no
meio adventista, bem como sobre a validade hermenêutica dele para a
interpretação do número 666. As interpretação mais popular no meio
adventista para o número 666, citado em Apocalipse 13:18 é a utilização
do suposto título papal Vicarius Filii Dei.
Entre as muitas questões a serem levantadas a partir desse assunto, o
que nos interessa neste artigo é a confiabilidade histórica dessa
expressão e a validade de seu uso nos círculos adventistas.
ORIGEM DO TÍTULO
O documento Doação de Constantino é a mais antiga referência do suposto título papal Vicarius Filii Dei.
Tendo sido escrito no período da Idade Média, esse é o mais antigo
relato eclesiástico que confere a Pedro a autoridade de ser “substituto
do Filho de Deus”.[2] Por quase 600 anos, o catolicismo o considerou
como genuíno, mesmo porque aproximadamente dez papas o utilizaram como
prova de sua autoridade temporal.[3] A menção do nome Constantino sugere
que esse documento deve ter sido escrito nos dias desse imperador, no
século 4 d.C.. Porém, Lorenzo Valla, por algum tempo secretário do papa
humanista Nicolau V, em 1440 escreveu uma crítica literária e histórica
demonstrando que a Doação de Constatino era um documento forjado, que
provavelmente foi composto em meados do século 9 d.C.[4]
VICARIUS FILII DEI EM AUTORES PROTESTANTES
O escritor protestante mais antigo a relacionar a expressão Vicarius Filii Dei ao
número 666 foi o alemão Andreas Helwig (ca. 1572-1643). Esse erudito
foi professor de línguas bíblicas e letras clássicas por quase três
décadas. Em 1612, Helwig escreveu sua obra Antichristus Romanus,
na qual reuniu 15 títulos nas línguas latina, grega e hebraica, que na
soma de suas letras dariam a cifra apocalíptica. Tal obra não enfatizou o
título Vicarius Filii Dei, mas o
considerou apenas como mais uma das pretensões da Igreja de Roma.
Segundo Helwig, quatro fatores eram essenciais para um nome ser aplicado
ao número apocalíptico: (1) a soma deveria dar a cifra correta; (2)
teria que concordar com a ordem papal; (3) deveria ser um nome do
próprio anticristo, não um título dado por seus inimigos; (4) teria que
ser um título usado pelo anticristo para a sua auto-ostentação. Porém,
essa interpretação se tornou comum entre autores de diversas
denominações em meados da Revolução Francesa (1789-1799), quase duzentos
anos após a publicação de sua obra.[5]
Autores protestantes como Amzi Armstrong (1771-1827),[6] os
presbiterianos William Linn (1752-1808)[7] e David Austin (1760-1831)[8]
e Robert Shimeall[9] aplicaram ao número 666 os títulos Ludovicus (latim), Lateinos (grego), Romith (hebraico) e Vicarius Filii Dei. Referente a esse último, John Bayford, em sua obra Messiah’s Kingdom (ca.
1820), afirmou que sua utilização era “dificilmente satisfatória” e que
a expressão correta ainda estava para ser descoberta.[10] Percebe-se,
assim, que desde o século 19, já havia certa relutância em aplicar esse
título ao número 666.
VICARIUS FILII DEI EM AUTORES ADVENTISTAS
Muitos dos pioneiros do movimento adventista foram contemporâneos dos
autores protestantes mencionados anteriormente. Sendo assim, é natural
encontrarmos semelhança entre as interpretações de Apocalipse 13:18 de
ambos os grupos. Foi por meio dos trabalhos de Uriah Smith, decano da
interpretação profética nos círculos adventistas,[11] que se atribuiu a
expressão Vicarius Filii Dei ao
papado. Smith assim entendia: a expressão mais plausível que temos visto
sugerir contendo o número da besta é o título que o papa toma para si
mesmo e permite que outros lhe apliquem. Esse título é Vicarius Filii Dei,
que quer dizer “Substituto do Filho de Deus”. Tomando as letras desse
título que os latinos usavam como numerais e dando-lhes seu valor
numérico, temos exatamente 666.[12]
A interpretação de Smith causou um impacto significativo no adventismo, a
ponto de John N. Andrews, o expoente teológico mais importante dessa
denominação, adotá-la na reimpressão de sua obra The Three Angels of Revelation XIV, 6-12,
em 1877. Os anos posteriores presenciaram uma expansão dessa visão, por
meio dos trabalhos públicos e impressos de alguns evangelistas
adventistas ao redor do mundo. Stephen. N. Haskell, por exemplo, ao
tratar do tema de Apocalipse 13, enfatizou apenas Vicarius Filii Dei.[13] O mesmo foi feito pelo autor brasileiro Aracely Mello ao afirmar que existem “fatos comprobatórios de que Vicarius Filii Deié
o título verdadeiro do papa e de Roma Papal.”[14] Roy Alan Anderson,
importante nome no evangelismo adventista, utilizou títulos como stur (aramaico), italika ekklesia, he latine Basiléia(grego) e Vicarius Filii Dei (latim).[15]
Por sua vez, o evangelista argentino Daniel Belvedere limitou a
interpretação do número 666 à expressão “substituto do Filho de
Deus”[16], e C. Mervyn Maxwell adotou essa mesma posição.[17]
Esse quem sabe seja o principal motivo para o título Vicarius Filii Dei ser
associado com Apocalipse 13:18 por tantos adventistas. Porém, por mais
popular que seja essa interpretação, é inegável que existem inúmeros
problemas na sua aplicação ao relato bíblico.
PROBLEMAS INTERPRETATIVOS
Como vimos anteriormente, o documento mais antigo a mencionar esse
título é a Doação de Constantino. A implicação disso é que essa
interpretação se baseia num falso decreto da Idade Média. Da mesma
forma, há certa controvérsia envolvendo a inscrição de Vicarius Filii Dei na mitra papal. A publicação Our Sunday Visitor,
uma popular revista católica americana, mencionou por duas ocasiões que
havia, de fato, uma inscrição na tiara do papa. A primeira menção foi
em 1914, e a segunda no ano seguinte. Porém, existe uma terceira citação
que nega qualquer tipo de inscrição na coroa do pontífice romano. E não
há qualquer tipo de evidência que prove o contrário.[18]
Provavelmente, esse assunto teve início com um incidente envolvendo W.
W. Prescott, um dos pioneiros da segunda geração adventista. Um
evangelista chamado C. T. Everson visitou o Museu do Vaticano e tirou
algumas fotografias de diversas tiaras papais, usadas ao longo dos
séculos. Nenhuma inscrição havia em sequer uma delas. Prescott foi
autorizado a utilizar as fotos na ilustração de um dos seus artigos.
Porém, a Southern Publishing Association, quando preparava a publicação
da versão atualizada da obra de Smith, contratou um artista que inseriu
as palavras Vicarius Filii Dei. A sede mundial da Igreja Adventista ordenou que a impressão fosse interrompida e que removessem as fraudes fotográficas.[19]
Em 1935, a revista Our Sunday Visitor desafiou o periódico adventista Present Truth,
que nessa época tinha como editor Francis D. Nichol, a provar que a
expressão “substituto do Filho de Deus” era um título oficial do papa.
Nichol consultou Prescott para solucionar esse problema. Prescott
afirmou que não era possível responder ao desafio, já que os adventistas
baseavam essas argumentações em fontes questionáveis.[20] Devido a esse
incidente, a sede mundial da IASD sugeriu que tal interpretação jamais
fosse utilizada novamente.[21] Ironicamente, hoje essa é a interpretação
mais popular entre os adventistas.
Em novembro de 1948, Leroy E. Froom publicou sua resposta para uma
pergunta referente à inscrição na tiara do papa. Após negar qualquer
tipo de grafia na mitra papal, Froom afirmou que “como arautos da
verdade, devemos proclamá-la verdadeiramente”, e que “em nome da verdade
e honestidade este periódico protesta contra algum membro da associação
ministerial da denominação adventista do sétimo dia”. Segundo ele, “a
verdade não necessita de fabricação para ajudá-la”.[22]
Além desses problemas, é necessário dizer que esse recurso é
exegeticamente desnecessário. O pregador escocês Robert Fleming Jr. (ca.
1600-1716), por exemplo, jamais utilizou Vicarius Filii Dei em
suas abordagens sobre o anticristo e chegou à mesma posição dos
adventistas a respeito desse poder, isto é, o catolicismo apostólico
romano.[23]
CONCLUSÃO
É evidente, portanto, que o uso da expressão Vicarius Filii Dei aplicado
ao número 666 de Apocalipse 13:18 é controvertida e questionável. Visto
que sua origem está ligada a um documento forjado. Como declarou Froom,
nesse assunto, “nós devemos honrar a verdade e meticulosamente observar
o princípio da honestidade ao lidar com as evidências sobre todas as
circunstâncias”.[24]
(Luiz Gustavo S. Assis é formado em Teologia pelo Unasp e doutorando no Boston College)
Referências:
- Bettenson, H. Documentos da igreja cristã, São Paulo, ASTE, 1998, 171.
- Coleman, Christopher B. The Treatise of Lorenzo Valla on the Donation of Constantine, Canada: University of Toronto Press, 1993, 1 e 2. Essa obra foi originalmente publicada em 1922.
- Cairns, Earle E. O cristianismo através dos séculos, São Paulo, Vida Nova, 2006, 213.
- Froom, Leroy E. The Prophetic Faith of Our Fathers, Washington, D.C.: Review and Herald Publishing Association, 1954, v. 2, 605-608.
- O título da obra é “A syllabus of lectures on the visions of the Revelation”.
- O título de seu trabalho é “Discourses on signs of the times”.
- O título de sua obra é “A prophetic leaf”, citada em Froom, op. cit., 342.
- Damsteegt, P. Gerard. Foundations of the Seventh-day Adventist Message and Mission, Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1997, 206.
- Froom, op. cit., 412.
- Timm, Alberto R. O santuário e as três mensagens angélicas: fatores integrativos no desenvolvimento das doutrinas adventistas. Engenheiro Coelho, SP: Imprensa Universitária Adventista, 2004, 137-138.
- Nichol, Francis D. (ed.). Seventh-day Adventist Biblical Commentary. Hangesrtown, MD: Review and Herald Publishing Association, 1980, v. 10, 1009.
- Haskell, Stephen. N. The Story of the Seer of Patmos. Nashville, TN: Southern Publishing Association, 1905. p. 105.
- Mello, Aracely S. A verdade sobre as profecias do Apocalipse. Taquara, RS: Grafiacs, 1982. 202-203.
- Anderson, Roy A. As Revelações do Apocalipse. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1988. 151.
- Belvedere, Daniel. Seminário revelações do Apocalipse. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1987, 102.
- C. Mervyn Maxwell. Uma nova era segundo as profecias do Apocalipse. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1998. 431.
- Nichol, Francis D. ed. op. cit., v. 9. 1071.
- Valentine, Gilbert. W.W. Prescott: Forgotten Giant of Adventism’s Second Generation. Washington D.C.: Review and Herald Pub. Association, 2005. 317.
- Ibid., 318.
- Ibid., 319.
- Froom, Leroy E. “Dubious Pictures of the Tiara”, The Ministry, novembro de 1948, 35.
- Torres, Milton Luiz. “Contenções Quanto à Interpretação Tradicional de 666 em Apocalipse 13:18”. Revista teológica SALT-IAENE, Cachoeira, BA, v. 2, n. 1, 1998. 64.
- Froom. “Dubious Pictures of the Tiara”, 35.
[via blog do Michelson Borges]
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