sábado, 14 de julho de 2018

666 e o Vicarius Filii Dei

Nesse artigo faço uma busca histórica da origem e do uso da expressão Vicarius Filii Dei como interpretação de Apocalipse 13:18 nos círculos adventistas. Após esse background histórico, discorrerei brevemente sobre o uso desse título no meio adventista, bem como sobre a validade hermenêutica dele para a interpretação do número 666. As interpretação mais popular no meio adventista para o número 666, citado em Apocalipse 13:18 é a utilização do suposto título papal Vicarius Filii Dei. Entre as muitas questões a serem levantadas a partir desse assunto, o que nos interessa neste artigo é a confiabilidade histórica dessa expressão e a validade de seu uso nos círculos adventistas.
ORIGEM DO TÍTULO
O documento Doação de Constantino é a mais antiga referência do suposto título papal Vicarius Filii Dei. Tendo sido escrito no período da Idade Média, esse é o mais antigo relato eclesiástico que confere a Pedro a autoridade de ser “substituto do Filho de Deus”.[2] Por quase 600 anos, o catolicismo o considerou como genuíno, mesmo porque aproximadamente dez papas o utilizaram como prova de sua autoridade temporal.[3] A menção do nome Constantino sugere que esse documento deve ter sido escrito nos dias desse imperador, no século 4 d.C.. Porém, Lorenzo Valla, por algum tempo secretário do papa humanista Nicolau V, em 1440 escreveu uma crítica literária e histórica demonstrando que a Doação de Constatino era um documento forjado, que provavelmente foi composto em meados do século 9 d.C.[4]
VICARIUS FILII DEI EM AUTORES PROTESTANTES
O escritor protestante mais antigo a relacionar a expressão Vicarius Filii Dei ao número 666 foi o alemão Andreas Helwig (ca. 1572-1643). Esse erudito foi professor de línguas bíblicas e letras clássicas por quase três décadas. Em 1612, Helwig escreveu sua obra Antichristus Romanus, na qual reuniu 15 títulos nas línguas latina, grega e hebraica, que na soma de suas letras dariam a cifra apocalíptica. Tal obra não enfatizou o título Vicarius Filii Dei, mas o considerou apenas como mais uma das pretensões da Igreja de Roma. Segundo Helwig, quatro fatores eram essenciais para um nome ser aplicado ao número apocalíptico: (1) a soma deveria dar a cifra correta; (2) teria que concordar com a ordem papal; (3) deveria ser um nome do próprio anticristo, não um título dado por seus inimigos; (4) teria que ser um título usado pelo anticristo para a sua auto-ostentação. Porém, essa interpretação se tornou comum entre autores de diversas denominações em meados da Revolução Francesa (1789-1799), quase duzentos anos após a publicação de sua obra.[5]
Autores protestantes como Amzi Armstrong (1771-1827),[6] os presbiterianos William Linn (1752-1808)[7] e David Austin (1760-1831)[8] e Robert Shimeall[9] aplicaram ao número 666 os títulos Ludovicus (latim), Lateinos (grego), Romith (hebraico) e Vicarius Filii Dei. Referente a esse último, John Bayford, em sua obra Messiah’s Kingdom (ca. 1820), afirmou que sua utilização era “dificilmente satisfatória” e que a expressão correta ainda estava para ser descoberta.[10] Percebe-se, assim, que desde o século 19, já havia certa relutância em aplicar esse título ao número 666.
VICARIUS FILII DEI EM AUTORES ADVENTISTAS
Muitos dos pioneiros do movimento adventista foram contemporâneos dos autores protestantes mencionados anteriormente. Sendo assim, é natural encontrarmos semelhança entre as interpretações de Apocalipse 13:18 de ambos os grupos. Foi por meio dos trabalhos de Uriah Smith, decano da interpretação profética nos círculos adventistas,[11] que se atribuiu a expressão Vicarius Filii Dei ao papado. Smith assim entendia: a expressão mais plausível que temos visto sugerir contendo o número da besta é o título que o papa toma para si mesmo e permite que outros lhe apliquem. Esse título é Vicarius Filii Dei, que quer dizer “Substituto do Filho de Deus”. Tomando as letras desse título que os latinos usavam como numerais e dando-lhes seu valor numérico, temos exatamente 666.[12]
A interpretação de Smith causou um impacto significativo no adventismo, a ponto de John N. Andrews, o expoente teológico mais importante dessa denominação, adotá-la na reimpressão de sua obra The Three Angels of Revelation XIV, 6-12, em 1877. Os anos posteriores presenciaram uma expansão dessa visão, por meio dos trabalhos públicos e impressos de alguns evangelistas adventistas ao redor do mundo. Stephen. N. Haskell, por exemplo, ao tratar do tema de Apocalipse 13, enfatizou apenas Vicarius Filii Dei.[13] O mesmo foi feito pelo autor brasileiro Aracely Mello ao afirmar que existem “fatos comprobatórios de que Vicarius Filii Deié o título verdadeiro do papa e de Roma Papal.”[14] Roy Alan Anderson, importante nome no evangelismo adventista, utilizou títulos como stur (aramaico), italika ekklesia, he latine Basiléia(grego) e Vicarius Filii Dei (latim).[15] Por sua vez, o evangelista argentino Daniel Belvedere limitou a interpretação do número 666 à expressão “substituto do Filho de Deus”[16], e C. Mervyn Maxwell adotou essa mesma posição.[17]
Esse quem sabe seja o principal motivo para o título Vicarius Filii Dei ser associado com Apocalipse 13:18 por tantos adventistas. Porém, por mais popular que seja essa interpretação, é inegável que existem inúmeros problemas na sua aplicação ao relato bíblico.
PROBLEMAS INTERPRETATIVOS
Como vimos anteriormente, o documento mais antigo a mencionar esse título é a Doação de Constantino. A implicação disso é que essa interpretação se baseia num falso decreto da Idade Média. Da mesma forma, há certa controvérsia envolvendo a inscrição de Vicarius Filii Dei na mitra papal. A publicação Our Sunday Visitor, uma popular revista católica americana, mencionou por duas ocasiões que havia, de fato, uma inscrição na tiara do papa. A primeira menção foi em 1914, e a segunda no ano seguinte. Porém, existe uma terceira citação que nega qualquer tipo de inscrição na coroa do pontífice romano. E não há qualquer tipo de evidência que prove o contrário.[18]
Provavelmente, esse assunto teve início com um incidente envolvendo W. W. Prescott, um dos pioneiros da segunda geração adventista. Um evangelista chamado C. T. Everson visitou o Museu do Vaticano e tirou algumas fotografias de diversas tiaras papais, usadas ao longo dos séculos. Nenhuma inscrição havia em sequer uma delas. Prescott foi autorizado a utilizar as fotos na ilustração de um dos seus artigos. Porém, a Southern Publishing Association, quando preparava a publicação da versão atualizada da obra de Smith, contratou um artista que inseriu as palavras Vicarius Filii Dei. A sede mundial da Igreja Adventista ordenou que a impressão fosse interrompida e que removessem as fraudes fotográficas.[19]
Em 1935, a revista Our Sunday Visitor desafiou o periódico adventista Present Truth, que nessa época tinha como editor Francis D. Nichol, a provar que a expressão “substituto do Filho de Deus” era um título oficial do papa. Nichol consultou Prescott para solucionar esse problema. Prescott afirmou que não era possível responder ao desafio, já que os adventistas baseavam essas argumentações em fontes questionáveis.[20] Devido a esse incidente, a sede mundial da IASD sugeriu que tal interpretação jamais fosse utilizada novamente.[21] Ironicamente, hoje essa é a interpretação mais popular entre os adventistas.
Em novembro de 1948, Leroy E. Froom publicou sua resposta para uma pergunta referente à inscrição na tiara do papa. Após negar qualquer tipo de grafia na mitra papal, Froom afirmou que “como arautos da verdade, devemos proclamá-la verdadeiramente”, e que “em nome da verdade e honestidade este periódico protesta contra algum membro da associação ministerial da denominação adventista do sétimo dia”. Segundo ele, “a verdade não necessita de fabricação para ajudá-la”.[22]
Além desses problemas, é necessário dizer que esse recurso é exegeticamente desnecessário. O pregador escocês Robert Fleming Jr. (ca. 1600-1716), por exemplo, jamais utilizou Vicarius Filii Dei em suas abordagens sobre o anticristo e chegou à mesma posição dos adventistas a respeito desse poder, isto é, o catolicismo apostólico romano.[23]
CONCLUSÃO
É evidente, portanto, que o uso da expressão Vicarius Filii Dei aplicado ao número 666 de Apocalipse 13:18 é controvertida e questionável. Visto que sua origem está ligada a um documento forjado. Como declarou Froom, nesse assunto, “nós devemos honrar a verdade e meticulosamente observar o princípio da honestidade ao lidar com as evidências sobre todas as circunstâncias”.[24]
(Luiz Gustavo S. Assis é formado em Teologia pelo Unasp e doutorando no Boston College)
Referências:
  1. Bettenson, H. Documentos da igreja cristã, São Paulo, ASTE, 1998, 171.
  2. Coleman, Christopher B. The Treatise of Lorenzo Valla on the Donation of Constantine, Canada: University of Toronto Press, 1993, 1 e 2. Essa obra foi originalmente publicada em 1922.
  3. Cairns, Earle E. O cristianismo através dos séculos, São Paulo, Vida Nova, 2006, 213.
  4. Froom, Leroy E. The Prophetic Faith of Our Fathers, Washington, D.C.: Review and Herald Publishing Association, 1954, v. 2, 605-608.
  5. O título da obra é “A syllabus of lectures on the visions of the Revelation”.
  6. O título de seu trabalho é “Discourses on signs of the times”.
  7. O título de sua obra é “A prophetic leaf”, citada em Froom, op. cit., 342.
  8. Damsteegt, P. Gerard. Foundations of the Seventh-day Adventist Message and Mission, Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1997, 206.
  9. Froom, op. cit., 412.
  10. Timm, Alberto R. O santuário e as três mensagens angélicas: fatores integrativos no desenvolvimento das doutrinas adventistas. Engenheiro Coelho, SP: Imprensa Universitária Adventista, 2004, 137-138.
  11. Nichol, Francis D. (ed.). Seventh-day Adventist Biblical Commentary. Hangesrtown, MD: Review and Herald Publishing Association, 1980, v. 10, 1009.
  12. Haskell, Stephen. N. The Story of the Seer of Patmos. Nashville, TN: Southern Publishing Association, 1905. p. 105.
  13. Mello, Aracely S. A verdade sobre as profecias do Apocalipse. Taquara, RS: Grafiacs, 1982. 202-203.
  14. Anderson, Roy A. As Revelações do Apocalipse. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1988. 151.
  15. Belvedere, Daniel. Seminário revelações do Apocalipse. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1987, 102.
  16. C. Mervyn Maxwell. Uma nova era segundo as profecias do Apocalipse. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1998. 431.
  17. Nichol, Francis D. ed. op. cit., v. 9. 1071.
  18. Valentine, Gilbert. W.W. Prescott: Forgotten Giant of Adventism’s Second Generation. Washington D.C.: Review and Herald Pub. Association, 2005. 317.
  19. Ibid., 318.
  20. Ibid., 319.
  21. Froom, Leroy E. “Dubious Pictures of the Tiara”, The Ministry, novembro de 1948, 35.
  22. Torres, Milton Luiz. “Contenções Quanto à Interpretação Tradicional de 666 em Apocalipse 13:18”. Revista teológica SALT-IAENE, Cachoeira, BA, v. 2, n. 1, 1998. 64.
  23. Froom. “Dubious Pictures of the Tiara”, 35.
[via blog do Michelson Borges]

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